segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Sonho americano


Sonho americano

 


"A TRAGÉDIA OCULTA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: TERRA DE MENDIGOS, FAMINTOS E DOENTES DESESPERADOS

Em uma rápida conversa de supermercado, hoje, ouvi que "lá nos Estados Unidos não tem pobreza, e todos podem pagar por serviços privados".

Sim, eu discordei e retorqui, mas não havia tempo nem instrumento para aprofundar minha argumentação.

O relógio contínua a me apressar, nesta quinta-feira de muito trabalho. Mas quero expor, por aqui, alguns dados da tragédia norte-americana.

Serve para que as amigas e amigos possam contestar a apologia do regime estadunidense, especialmente aquela constituída pela extrema-direita nacional.

Vamos lá, com dados oficiais. Segundo o U.S. Department of Housing and Urban Development (HUD), na contagem “point-in-time” de janeiro de 2024, cerca de 771.480 pessoas estavam vivendo em situação de “homelessness”.

Em outras palavras, eram sem-teto.

Detalhe importante: no ano anterior, eram 653.104. Ou seja, o número de marginalizados está crescendo, dia após dia.

Este é o piso estatístico. Mas há muita subnotificação. Muita gente vive de favor na casa de um parente ou amigo. Outros estão em prédios abandonados.

E lá é comum que as pessoas vivam dentro de seus carros. Assista ao filme "Nomadland", com Frances McDormand.

Para conhecimento geral: há muitos brasileiros imigrantes vivendo em veículos por lá.

Vamos nos aprofundar nessa tragédia humanitária. Estudos da National Alliance to End Homelessness, da USC e da UCLA mostram que entre 900 mil e 1,3 milhão de pessoas não têm moradia estável.

Não estão nas ruas diariamente, mas pulam de abrigo em abrigo, refugiam-se em fábricas desativadas, dividem um canto num ônibus velho ou dormem em uma estação rodoviária.

As chamadas pesquisas longitudinais indicam que, ao longo de 12 meses, o número de americanos que experimentam situação de rua, mesmo que não contínua, é de assombrosos 3,5 milhões de pessoas.

Isso tudo na capital do Império ocidental, onde estão as famílias mais ricas e esbanjadoras do mundo.

Mas não é somente esta a catástrofe norte-americana. O dado a seguir tem como fonte relatórios oficiais do United States Department of Agriculture (USDA), contextualizados por ONGs e organizações de combate à fome, sobretudo a Feeding America.

Hoje, 47,4 milhões de pessoas nos EUA acordam pela manhã e não sabem se terão o que comer.

Ou seja, na terra dos mais impressionantes banquetes dos magnatas do capital, boa parte da população obtém comida na lata de lixo.

Desses 47,4 milhões de desnutridos, 19,3 milhões são pessoas brancas não hispânicas.

Segundo o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), em 2024, cerca de 27,2 milhões de pessoas não tinham qualquer cobertura médica.

Assim, precisavam se virar em casa quando tinham uma pneumonia, perdiam um dedo ou enfrentavam uma intoxicação.

Segundo Health Justice Monitor, pode-se acreditar que, anualmente, até 200 mil pessoas morram nos Estados Unidos em razão da falta de tratamento médico básico.

Os EUA não têm SUS, vale sempre lembrar.

Na Science Daily, há um estudo deste ano afirmando que a mortalidade evitável continua crescendo no país, ao contrário do que ocorre em muitas nações ricas.

São pessoas velhas ou mesmo jovens que descem à tumba vítimas de causas tratáveis ou preveníveis, como acidentes, infecções e doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.

E por qual motivo esse é, hoje, um país tão ruim para se viver?

Primeiramente, pela desigualdade extrema. A riqueza é enorme, mas criminosamente concentrada.

Não adianta ter PIB alto se o dinheiro fica, em grande parte, nas mãos dos tubarões capitalistas.

O modelo de proteção social dos Estados Unidos é precário, resultado da convenção social determinista protestante-capitalista de que dar-se bem na vida é a prova de que o indivíduo foi um dos escolhidos de Deus.

Em comparação com países europeus ocidentais e mesmo com o Brasil, o imenso feudo de Donald Trump tem menos políticas universais de bem-estar, menos seguro-desemprego abrangente, quase nenhuma saúde pública e menos programas de renda garantida.

O Supplemental Nutrition Assistance Program (SNAP), uma espécie de “vale-alimentação” americano, tem valor baixo e cobertura é limitada.

Ao mesmo tempo, com o avanço das políticas privadas de maximização de lucro, a moradia, a saúde e a alimentação são cada vez mais caras.

Trump acabou com várias das regulações que protegiam os consumidores-cidadãos, de modo a incrementar o faturamento das grandes corporações.

Na era da digitalização forçada, operada pelas Big Techs, todas elas alinhadas com o governo republicano, o trabalho está se precarizando rapidamente.

Os empregos remanescentes têm salários baixos, poucos benefícios e jornadas extremas de trabalho, como o agora popular 996. São seis dias de trabalho, com início às 9h00 e finalização às 21h00.

Há também um forte estigma cultural contra programas sociais, e muitos estados dificultam acesso por meio de regras extremamente restritivas.

Pessoas em áreas rurais, migrantes, idosos, mães solo e minorias raciais enfrentam obstáculos extras. Sem redes de apoio e com políticas insuficientes, tornam-se os primeiros a perder o teto, a desnutrir-se e a adoecer.

Nos EUA, vale dizer, prevalece a matriz de pensamento individualista e o “self-reliance”.

Assim, pedir auxílio alimentar é visto como preguiça. Receber o SNAP equivale a mostrar publicamente incompetência, indolência e aceitação do fracasso. Usar os food banks, os bancos de alimentos, é motivo de vergonha.

Documentos de ONGs mostram que pessoas caminham quilômetros para pegar comida em cidades onde ninguém as conhece, para evitar o estigma.

Viu-se a entrevista de uma mulher no Alabama que esperou a noite para ir ao banco de alimentos “a fim de não ser vista pelos vizinhos”.

Mas tudo ainda é pior. Vários estados, especialmente os governados por republicanos, impõem regras que dificultam o acesso ao socorro público.

É o caso da obrigatoriedade de comprovar 20 horas semanais de trabalho para adultos sem dependentes.

É o caso da revisão compulsória de documentos. Qualquer erro na papelada e o benefício é suspenso.

No Arkansas, milhares de pessoas perderam o SNAP porque não conseguiram comprovar horas de trabalho. E não foi porque não trabalhavam.

Mas porque, na era da precariedade laboral, seus empregos tinham horários irregulares. Eram pessoas que, por exemplo, ganhavam a vida em supermercados, motéis e fast foods.

Os serviços são feitos para não funcionar. Em estados como Texas e Arizona, filas telefônicas para pedir ou renovar o SNAP chegam a duas ou três horas.

Um relatório da Urban Institute descreve uma idosa texana que ficou três meses sem SNAP porque seu atestado médico de incapacidade foi recebido com atraso pelo sistema digital do estado.

Já gravemente afetada pela fome, brutalmente enfraquecida, só voltou a receber o benefício após a intervenção de assistentes sociais.

Migrantes, mesmo documentados, muitas vezes evitam pedir benefícios por medo de serem vistos como “pesados” para o governo. Na vigência do “public charge”, muita gente parou de pedir SNAP por receio de comprometer os processos de imigração.

Hoje, a situação é desesperadora, com as tropas de Trump perseguindo imigrantes nas ruas, invadindo casas, igrejas e instituições beneficentes.

Organizações na Califórnia relatam que famílias de origem latino-americana deixaram de pedir comida para seus filhos norte-americanos (os nascidos lá têm esse direito adquirido) porque temem ser deportadas.

A situação de muitos idosos também é aflitiva. Um estudo de Boston mostrou que 1 em cada 5 idosos atendidos por “Meals on Wheels” relatava ter ficado sem comida ao menos um dia por semana.

As mães solo estão as principais vítimas da insegurança alimentar. Faltam creches públicas. Sem creche, elas não conseguem trabalhar; sem trabalhar, perdem benefícios; sem benefícios, não têm como comprar comida.

Em Detroit, ONGs registram que essas mulheres esperam até quatro meses pela aprovação de auxílio, e nesse período dependem exclusivamente de doações comunitárias.

Nas reservas indígenas, a situação também é gravíssima. A cesta básica do supermercado tributarizado pode custar o dobro do preço cobrado em cidades próximas. E o SNAP muitas vezes não oferece valor suficiente para a compra de alimentos frescos.

Detalhe, o benefício do SNAP não é entregue em dinheiro. Ele vem em um cartão chamado EBT (Electronic Benefit Transfer), que funciona como um cartão de débito.

Em 2022, segundo o National Institute of Mental Health (NIMH), cerca de 59,3 milhões de adultos, ou seja, 23,1% da população adulta dos EUA apresentavam algum tipo de transtorno mental (“Any Mental Illness”, AMI).

Entre os jovens adultos, de 18 a 25 anos, essa taxa já era de 36,2%. De acordo com o relatório de 2024 da Mental Health America (MHA), uma parcela expressiva da juventude já relatou pensamentos suicidas sérios.

O suicídio é uma das faces mais trágicas da profunda crise estadunidense. Em 2022, os EUA registraram cerca de 49.449 mortes por suicídio, o número mais alto já medido, segundo dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).

Além das mortes, a ideação suicida atinge milhões: segundo relatório de 2024 da Mental Health America, cerca de 5,5% dos adultos relatam pensamentos suicidas sérios. Significa que 14 milhões de pessoas cogita de tirar a própria vida.

Apesar do sofrimento psicológico coletivo, grande parte das pessoas não tem acesso a qualquer tipo de tratamento. O recurso imediato e insatisfatório, muitas vezes, é consumo de álcool e drogas.

Está é, pois, a realidade, nua, crua e documentada dos Estados Unidos da América, a capital do neoliberalismo e, hoje, o centro de disseminação do neofascismo.

Que continuemos a fazer nosso próprio caminho.

BIBLIOGRAFIA

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Do Jornalista Walter Falceta

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