Sonho americano
"A TRAGÉDIA OCULTA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: TERRA DE MENDIGOS, FAMINTOS E DOENTES DESESPERADOS
Em uma rápida conversa de
supermercado, hoje, ouvi que "lá nos Estados Unidos não tem pobreza, e
todos podem pagar por serviços privados".
Sim, eu discordei e
retorqui, mas não havia tempo nem instrumento para aprofundar minha
argumentação.
O relógio contínua a me
apressar, nesta quinta-feira de muito trabalho. Mas quero expor, por aqui,
alguns dados da tragédia norte-americana.
Serve para que as amigas e
amigos possam contestar a apologia do regime estadunidense, especialmente
aquela constituída pela extrema-direita nacional.
Vamos lá, com dados
oficiais. Segundo o U.S. Department of Housing and Urban Development (HUD), na
contagem “point-in-time” de janeiro de 2024, cerca de 771.480 pessoas estavam
vivendo em situação de “homelessness”.
Em outras palavras, eram
sem-teto.
Detalhe importante: no ano
anterior, eram 653.104. Ou seja, o número de marginalizados está crescendo, dia
após dia.
Este é o piso estatístico.
Mas há muita subnotificação. Muita gente vive de favor na casa de um parente ou
amigo. Outros estão em prédios abandonados.
E lá é comum que as
pessoas vivam dentro de seus carros. Assista ao filme "Nomadland",
com Frances McDormand.
Para conhecimento geral:
há muitos brasileiros imigrantes vivendo em veículos por lá.
Vamos nos aprofundar nessa
tragédia humanitária. Estudos da National Alliance to End Homelessness, da USC
e da UCLA mostram que entre 900 mil e 1,3 milhão de pessoas não têm moradia estável.
Não estão nas ruas
diariamente, mas pulam de abrigo em abrigo, refugiam-se em fábricas
desativadas, dividem um canto num ônibus velho ou dormem em uma estação
rodoviária.
As chamadas pesquisas
longitudinais indicam que, ao longo de 12 meses, o número de americanos que
experimentam situação de rua, mesmo que não contínua, é de assombrosos 3,5
milhões de pessoas.
Isso tudo na capital do
Império ocidental, onde estão as famílias mais ricas e esbanjadoras do mundo.
Mas não é somente esta a
catástrofe norte-americana. O dado a seguir tem como fonte relatórios oficiais
do United States Department of Agriculture (USDA), contextualizados por ONGs e
organizações de combate à fome, sobretudo a Feeding America.
Hoje, 47,4 milhões de
pessoas nos EUA acordam pela manhã e não sabem se terão o que comer.
Ou seja, na terra dos mais
impressionantes banquetes dos magnatas do capital, boa parte da população obtém
comida na lata de lixo.
Desses 47,4 milhões de
desnutridos, 19,3 milhões são pessoas brancas não hispânicas.
Segundo o Centers for
Disease Control and Prevention (CDC), em 2024, cerca de 27,2 milhões de pessoas
não tinham qualquer cobertura médica.
Assim, precisavam se virar
em casa quando tinham uma pneumonia, perdiam um dedo ou enfrentavam uma
intoxicação.
Segundo Health Justice
Monitor, pode-se acreditar que, anualmente, até 200 mil pessoas morram nos
Estados Unidos em razão da falta de tratamento médico básico.
Os EUA não têm SUS, vale
sempre lembrar.
Na Science Daily, há um
estudo deste ano afirmando que a mortalidade evitável continua crescendo no
país, ao contrário do que ocorre em muitas nações ricas.
São pessoas velhas ou
mesmo jovens que descem à tumba vítimas de causas tratáveis ou preveníveis, como
acidentes, infecções e doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.
E por qual motivo esse é,
hoje, um país tão ruim para se viver?
Primeiramente, pela
desigualdade extrema. A riqueza é enorme, mas criminosamente concentrada.
Não adianta ter PIB alto
se o dinheiro fica, em grande parte, nas mãos dos tubarões capitalistas.
O modelo de proteção
social dos Estados Unidos é precário, resultado da convenção social
determinista protestante-capitalista de que dar-se bem na vida é a prova de que
o indivíduo foi um dos escolhidos de Deus.
Em comparação com países
europeus ocidentais e mesmo com o Brasil, o imenso feudo de Donald Trump tem
menos políticas universais de bem-estar, menos seguro-desemprego abrangente,
quase nenhuma saúde pública e menos programas de renda garantida.
O Supplemental Nutrition
Assistance Program (SNAP), uma espécie de “vale-alimentação” americano, tem
valor baixo e cobertura é limitada.
Ao mesmo tempo, com o
avanço das políticas privadas de maximização de lucro, a moradia, a saúde e a
alimentação são cada vez mais caras.
Trump acabou com várias
das regulações que protegiam os consumidores-cidadãos, de modo a incrementar o
faturamento das grandes corporações.
Na era da digitalização
forçada, operada pelas Big Techs, todas elas alinhadas com o governo
republicano, o trabalho está se precarizando rapidamente.
Os empregos remanescentes
têm salários baixos, poucos benefícios e jornadas extremas de trabalho, como o
agora popular 996. São seis dias de trabalho, com início às 9h00 e finalização
às 21h00.
Há também um forte estigma
cultural contra programas sociais, e muitos estados dificultam acesso por meio
de regras extremamente restritivas.
Pessoas em áreas rurais,
migrantes, idosos, mães solo e minorias raciais enfrentam obstáculos extras.
Sem redes de apoio e com políticas insuficientes, tornam-se os primeiros a
perder o teto, a desnutrir-se e a adoecer.
Nos EUA, vale dizer,
prevalece a matriz de pensamento individualista e o “self-reliance”.
Assim, pedir auxílio
alimentar é visto como preguiça. Receber o SNAP equivale a mostrar publicamente
incompetência, indolência e aceitação do fracasso. Usar os food banks, os
bancos de alimentos, é motivo de vergonha.
Documentos de ONGs mostram
que pessoas caminham quilômetros para pegar comida em cidades onde ninguém as
conhece, para evitar o estigma.
Viu-se a entrevista de uma
mulher no Alabama que esperou a noite para ir ao banco de alimentos “a fim de
não ser vista pelos vizinhos”.
Mas tudo ainda é pior.
Vários estados, especialmente os governados por republicanos, impõem regras que
dificultam o acesso ao socorro público.
É o caso da
obrigatoriedade de comprovar 20 horas semanais de trabalho para adultos sem
dependentes.
É o caso da revisão
compulsória de documentos. Qualquer erro na papelada e o benefício é suspenso.
No Arkansas, milhares de
pessoas perderam o SNAP porque não conseguiram comprovar horas de trabalho. E
não foi porque não trabalhavam.
Mas porque, na era da
precariedade laboral, seus empregos tinham horários irregulares. Eram pessoas que,
por exemplo, ganhavam a vida em supermercados, motéis e fast foods.
Os serviços são feitos
para não funcionar. Em estados como Texas e Arizona, filas telefônicas para
pedir ou renovar o SNAP chegam a duas ou três horas.
Um relatório da Urban
Institute descreve uma idosa texana que ficou três meses sem SNAP porque seu
atestado médico de incapacidade foi recebido com atraso pelo sistema digital do
estado.
Já gravemente afetada pela
fome, brutalmente enfraquecida, só voltou a receber o benefício após a intervenção
de assistentes sociais.
Migrantes, mesmo
documentados, muitas vezes evitam pedir benefícios por medo de serem vistos
como “pesados” para o governo. Na vigência do “public charge”, muita gente
parou de pedir SNAP por receio de comprometer os processos de imigração.
Hoje, a situação é
desesperadora, com as tropas de Trump perseguindo imigrantes nas ruas,
invadindo casas, igrejas e instituições beneficentes.
Organizações na Califórnia
relatam que famílias de origem latino-americana deixaram de pedir comida para
seus filhos norte-americanos (os nascidos lá têm esse direito adquirido) porque
temem ser deportadas.
A situação de muitos
idosos também é aflitiva. Um estudo de Boston mostrou que 1 em cada 5 idosos
atendidos por “Meals on Wheels” relatava ter ficado sem comida ao menos um dia
por semana.
As mães solo estão as
principais vítimas da insegurança alimentar. Faltam creches públicas. Sem
creche, elas não conseguem trabalhar; sem trabalhar, perdem benefícios; sem
benefícios, não têm como comprar comida.
Em Detroit, ONGs registram
que essas mulheres esperam até quatro meses pela aprovação de auxílio, e nesse
período dependem exclusivamente de doações comunitárias.
Nas reservas indígenas, a
situação também é gravíssima. A cesta básica do supermercado tributarizado pode
custar o dobro do preço cobrado em cidades próximas. E o SNAP muitas vezes não
oferece valor suficiente para a compra de alimentos frescos.
Detalhe, o benefício do
SNAP não é entregue em dinheiro. Ele vem em um cartão chamado EBT (Electronic
Benefit Transfer), que funciona como um cartão de débito.
Em 2022, segundo o
National Institute of Mental Health (NIMH), cerca de 59,3 milhões de adultos,
ou seja, 23,1% da população adulta dos EUA apresentavam algum tipo de
transtorno mental (“Any Mental Illness”, AMI).
Entre os jovens adultos,
de 18 a 25 anos, essa taxa já era de 36,2%. De acordo com o relatório de 2024
da Mental Health America (MHA), uma parcela expressiva da juventude já relatou
pensamentos suicidas sérios.
O suicídio é uma das faces
mais trágicas da profunda crise estadunidense. Em 2022, os EUA registraram
cerca de 49.449 mortes por suicídio, o número mais alto já medido, segundo
dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).
Além das mortes, a ideação
suicida atinge milhões: segundo relatório de 2024 da Mental Health America,
cerca de 5,5% dos adultos relatam pensamentos suicidas sérios. Significa que 14
milhões de pessoas cogita de tirar a própria vida.
Apesar do sofrimento
psicológico coletivo, grande parte das pessoas não tem acesso a qualquer tipo
de tratamento. O recurso imediato e insatisfatório, muitas vezes, é consumo de
álcool e drogas.
Está é, pois, a realidade,
nua, crua e documentada dos Estados Unidos da América, a capital do
neoliberalismo e, hoje, o centro de disseminação do neofascismo.
Que continuemos a fazer
nosso próprio caminho.
BIBLIOGRAFIA
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Do Jornalista Walter
Falceta

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