Walmir
Rosário*
Lembro-me bem que nos tempos
em que ainda criança, a segurança pública era feita com muito esmero, embora os
exageros também fossem fecundos. Não era pra menos, pois os tempos eram outros,
em que não se falava em direitos humanos. O que valia mesmo era a palavra das
autoridades, ou na falta delas, de alguém que detivesse algum poder.
Em matéria de segurança, aqui
em Itabuna, os equipamentos eram bem distribuídos. Em cada um dos bairros
existia um aparelho da delegacia, com delegado e os chamados “inspetores”,
geralmente um funcionário da prefeitura destinado para este fim, ou alguém que
tinha a polícia como vocação, vontade essa não realizada.
A autoridade competente em
cada um desses bairros era alguém indicado pelo prefeito por ser seu amigo, seu
cabo eleitoral, ou alguém com coragem suficiente para meter os meliantes no
xadrez. Sim, cada um desses aparatos existia uma cela, onde eram “enjaulados”
aqueles que cometiam qualquer deslises contra a comunidade.
De pequenos furtos, roubos,
brigas de ruas, bares e de marido e mulher, tudo era resolvido pelo delegado
(chamado de calça curta), com o auxílio do inspetor. A depender do crime
praticado, o meliante, pra começo de conversa, tinha que respeitar a autoridade
e era submetido a uma sova, que podia ser na “mão grande” ou outros apetrechos
mais apropriados, como a uma palmatória, bainha de facão, ou o próprio, batido
com a banda ou folha, para que aprendesse a se comportar.
Mas, pelo que pude observar,
não era uma profissão – se é que assim pode ser chamada essa obrigação – muito
segura, pois tinha lá os seus percalços, que o diga um amigo meu que assumiu
esse posto máximo de segurança em Ferradas. Ao receber a voz de prisão do
delegado, o bandido que ceifou a vida de um irmão de sangue ameaçou, dizendo de
pronto: “Se o delegado está vendo o que fiz com ele, que é meu irmão, pode
imaginar o que farei com o senhor quando for solto”. Imediatamente, a voz de
prisão se transformou em “esteja solto”. E até hoje meu amigo Faruk desfruta
sua proveitosa aposentadoria.
Apesar dessas exceções, a
regra geral era da chamada “maré mansa”, sem grande sobressaltos para a sua
segurança, pois os transgressores da lei eram mais chegados às contravenções
penais do que aos crimes de pequena monta, as contravenções penais. Pulavam um
quintal ali, subtraíam uma mercadoria num venda de comércio em geral, ou davam uns
tapas numa briga num jogo de gude ou jogavam dados pra valer (apostado).
No caso dos amigos do alheio,
a depender do modus operandi, os agentes da lei já sabiam quem
eram os prováveis autores e davam uma busca no bairro, inclusive na residência
da família. E essa providência não dependia de nenhum mandado judicial, bastava
apenas e tão somente a vontade da “autoridade”. Alegações outras contra a
obstrução da “autoridade policial” simplesmente não eram admitidas e ponto
final.
Volta e meia um crime mais significativo,
ou fatal, era cometido e aí, sim, era requisitada a Polícia Militar e Civil
para dar conta dos fatos. Mas não era todo o dia que um fato dessa grandeza
merecesse a atenção dos verdadeiros agentes de segurança, ou da lei, como
costumavam a ser chamados. A cidade ainda gozava de certa tranquilidade.
Os “delegados calça curta”,
dentro das condições existentes, davam conta do recado, mesmo que vez em quando
eram chamados a atenção pela condução nem sempre legal dos inquéritos. Por
ouvir dizer, lembro desses abnegados da segurança que já indiciaram até mesmo
animais, como a vaca Florisbela, na vizinha cidade de Itapé, inquérito esse
tornado sem feito pela atenção de um zeloso promotor de justiça.
No bairro Conceição, também
por ouvir dizer, acumulei conhecimento de muitas dessa histórias – ou estórias
–, a depender do grau de credibilidade de quem nos contava. Uma delas me marcou
bem, pois foi narrada por uma pessoa tida e havida como de bem, conhecida por
Turrão, que era antigamente conhecido pelo nome de Albertino César.
Segundo contou, um desses
costumeiros praticantes de contravenções penais pulou o muro de um vizinho e
atacou o galinheiro, subtraindo alguns frangos de raça, mantido para as
homéricas brigas de galo na rinha do bairro da Conceição. Ao receber a queixa,
o zeloso “inspetor” não se fez de rogado e, pelo conhecido modus
operandi, se dirigiu à casa do meliante dando voz de prisão.
Ao resistir à voz de prisão,
tentou correr, mas foi detido prontamente pela grande plateia que acompanhava o
inspetor, sendo contido e amarrado com cordas. E o inspetor tinha que prestar
contas da ação com rapidez, haja vista que o proprietário dos galináceos era
pessoa de importância na sociedade, amigo pessoal do prefeito e quase vereador,
pois perdeu a eleição por umas três dúzias de votos.
Para completar o serviço eram
preciso entregar o “troféu” ao delegado para as providências de praxe. Então a
comitiva desfilou pelas ruas do bairro da Conceição, em direção à feira livre –
no local onde hoje funciona a FTC –, onde o delegado calça curta trabalhava em
sua barraca de farinha. Por onde passavam, a comitiva aumentava, bem como as
dores da porradas sofridas pelo amigo do alheio.
Ao chegar à barraca, nosso
bravo delegado deixou de atender um freguês para dar ouvidos ao subordinado,
que contou o crime ocorrido, com a gravidade de ter sido aplicado contra uma
pessoa de bem. E assim que a plateia aumentou o suficiente, para o desespero do
prisioneiro, o delegado largou a medida de farinha, sacou de seu revólver, e do
alto dos seu pulmões, em voz solene anunciou:
“Teje
preso, seu amarrado!”.
E com o sentimento do dever
cumprido ainda ordenou: “Leve-o à delegacia para os costumes de sempre!”.
Em seguida, Juquinha fez um
gesto próprios dos vencedores, deu meia volta e voltou a atender ao comprador
de farinha.
* Jornalista e advogado.
Publicado na edição especial do
Jornal Agora sobre Itabuna, em 28-08-2016