Pinga x Cachaça
Vocês sabiam que pinga e cachaça são coisas
diferentes? Não? Pois é, mas são… Mas são termos utilizados como sinônimos por
quase todo mundo. É bem difícil eu ingerir cachaça pura, exceto por três
tipos que ganharam meu paladar: a Tequila, a Canelinha e a Jurupinga.
Fora esses três tipos, fico com uma boa caipirinha, seja com limão, seja
com outras frutas. Segue uma pequena história sobre a cachaça e a destilação
pelo mundo.
A cachaça é destilada a partir da borra ou
melaço da cana, ou seja, das sobras da fabricação do açúcar. Já a pinga
é fabricada a partir da garapa, do caldo de cana fermentado e destilado, depois
da fervura e evaporação, que “pinga” na bica do alambique.
Os primeiros relatos sobre a fermentação vêm dos egípcios
antigos. Curavam várias moléstias, inalando vapor de líquidos aromatizados
e fermentados, absorvido diretamente do bico de uma chaleira, num ambiente
fechado. Os gregos registram o processo de obtenção da ácqua
ardens (a água que pega fogo ou água ardente _al kuhu). Alquimistas
tomam conhecimento da água ardente, atribuindo-lhe propriedades
místico-medicinais. Transforma-se em água da vida, e a eau
de vie é receitada como elixir da longevidade.
A aguardente então vai da Europa para o Oriente
Médio, pela força da expansão do Império Romano. São os árabes que descobrem os
equipamentos para a destilação, semelhantes aos que conhecemos hoje. Eles não
usam a palavra al kuhu e sim al raga, originando o nome da mais popular
aguardente da península arábica: arak;
uma aguardente misturada com licores de anis e degustada com água. A tecnologia
de produção espalha-se pelo velho e novo mundo. Na Itália, o destilado
de uva fica conhecido como grappa. Em terras Germânicas,
se destila a partir da cereja, o Kirsch; na
antiga Tchecoslováquia, atualmente dividida em República Tcheca e
República Eslovaca, a destilação da Sleva (espécie de ameixa) gera a slevovice (lê-se eslevovitse). Na Escócia
fica popular o whisky, destilado da cevada
sacarificada. No Extremo Oriente, a aguardente serve para esquentar o frio das
populações que não fabricam vinho. Na Rússia a vodka,
de centeio. Na China e Japão, o sake,
produzido a partir da fermentação do arroz é frequentemente confundido com uma
aguardente devido ao seu elevado teor alcoólico, mas é na verdade um vinho.
Portugal também absorve a tecnologia dos árabes e destila a partir do bagaço de
uva, a bagaceira.
Já em 1530 os primeiros donatários portugueses
decidem começar empreendimentos nas terras orientais do Novo Mundo,
implementando o engenho de açúcar com conhecimento e tecnologia adquiridos nas
Índias Orientais, vindas do sul da Ásia. A geração inicial de colonizadores
apreciava a bagaceira portuguesa e o vinho do porto. Assim como a alimentação,
toda bebida era importada da metrópole. Num engenho da capitania de São
Vicente, entre 1532 e 1548, descobrem o vinho de
cana-de-açúcar – garapa azeda, que fica ao relento em cochos de madeiras
para os animais, vinda dos tachos de rapadura. É uma bebida limpa, em
comparação com o cauim – vinho produzido pelos
índios, no qual todos cospem num enorme caldeirão de barro para ajudar
na fermentação do milho. Os senhores de engenho passam a servir o tal caldo,
denominado cagaça, para os escravos. Daí é um pulo para destilar a
cagaça, nascendo assim a cachaça.
Uma outra teoria diz que antigamente, no Brasil, para se ter melado, os
escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não
podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Um dia,
cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos
simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer? A saída que encontraram
foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o
melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes. Misturaram o tal melado
azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. O “azedo” do melado antigo era
álcool, que aos poucos foi evaporando e formou goteiras no teto do engenho, que
pingavam constantemente. Era a cachaça, já formada,
que pingava. Daí o nome “PINGA”. Quando a pinga batia nas suas costas
marcadas com as chibatadas dos feitores, ardia muito. Por isso deram o
nome de “ÁGUA-ARDENTE”. Caindo em seus rostos e escorrendo até a boca, os
escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de
dançar. Então, sempre que queriam ficar alegres, repetiam o processo. Com o
tempo a fabricação da cachaça foi sendo aprimorada e caiu no gosto da população
em geral. Hoje em dia é artigo de exportação.
Dos meados do século XVI até metade do século XVII
as “casas de cozer méis” se multiplicam nos engenhos. A cachaça torna-se moeda
corrente para compra de escravos na África. Alguns engenhos passam a dividir a
atenção entre o açúcar e a cachaça. A descoberta de ouro nas Minas Gerais, traz
uma grande população, vinda de todos os cantos do país, que constrói cidades
sobre as montanhas frias da Serra do Espinhaço. A cachaça ameniza a
temperatura.
Incomodada com a
queda do comércio da bagaceira e do vinho portugueses na colônia e alegando que
a bebida brasileira prejudica a retirada do ouro das minas, a Corte proíbe a
partir de 1635 várias vezes a produção, comercialização e até o consumo da
cachaça. Sem resultados, a Metrópole portuguesa resolve taxar o destilado. Em
1756 a aguardente de cana-de-açúcar foi um dos gêneros que mais contribuíram
com impostos voltados para a reconstrução de Lisboa, abatida por um grande
terremoto em 1755.
Como símbolo dos ideais de liberdade, a cachaça
percorre as bocas dos Inconfidentes e da população que apóia a Conjuração
Mineira (ou Inconfidência Mineira). A aguardente da terra se transforma no
símbolo de resistência à dominação portuguesa. Com o passar dos tempos
melhoram-se as técnicas de produção. A cachaça é apreciada por todos. É
consumida em banquetes palacianos e misturada ao gengibre e outros
ingredientes, nas festas religiosas portuguesas – o famoso quentão.
Devido ao seu baixo valor e associação às classes
mais baixas (primeiro os escravos e depois os pobres e miseráveis), a cachaça
sempre deteve uma áurea marginal. Contudo, nas últimas décadas, seu
reconhecimento internacional tem contribuído para diluir o índice de rejeição
dos próprios brasileiros, alçando um status de bebida chique e requintada,
merecedora dos mais exigentes paladares. Atualmente várias marcas de boa
qualidade figuram no comércio nacional e internacional e estão presentes nos
melhores restaurantes e adegas residenciais pelo Brasil e pelo mundo.
De acordo com o Decreto
nº 4.851, de 2003, o artigo 92 diz o seguinte sobre a Cachaça: Cachaça é
a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com
graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito por cento em volume, a
vinte graus Celsius (°C), obtida pela destilação do mosto fermentado de
cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo ser
adicionada de açúcares até seis gramas por litro, expressos em sacarose.
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