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O escritor russo Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881) teve na vida três grandes cachaças, ou vícios, que trouxeram desastres pontuais. A roleta lhe consumiu muito dinheiro. No jornalismo, em que quase sempre ganhou muito mal, chegou a abrir duas revistas que faliram (Tempo e Época) – ele era péssimo administrador, sem contar os problemas com a censura czarista. O terceiro vício, mulheres. Autor do clássico romance Um jogador, é em outra obra sua, publicada recentemente na Espanha, que se encontram novas perspectivas sobre ele: Diario de un escritor: crónicas, artículos, crítica y apuntes. Trata-se da primeira coletânea, de que se tem notícia fora da Rússia, de toda a sua produção jornalística. Aliás, uma unanimidade entre os seus comentaristas pelo mundo, desde o início do século passado, é que o lado jornalista foi fundamental para o lado escritor e vice-versa. Dostoiévski só não produziu mais textos para essa vertente por não ter onde editá-los. Se fosse vivo hoje, seria um blogueiro dos mais pesados da internet. A professora da Universidade Columbia (EUA) e presidente do International Dostoevsky Society, Deborah Martinsen, desconhece edição, fora da Rússia, tão ampla do trabalho jornalístico do autor. Paul Vielo, o organizador do volume de 1.600 páginas, oferece ainda, entre o material publicado, uma ampla antologia dos apontamentos e rascunhos extraídos de cadernos utilizados por anos pelo escritor russo, que depois foram trabalhados jornalisticamente. Certo é que Dostoiévski tornou-se, em 40 anos de vida profissional, um dos mais importantes escritores russos do século XIX. A crítica o considerava péssimo, mas revolucionou a prosa que explodiria em todas as vanguardas do século XX, incluindo outras vertentes de expressão e de pensamento. Um aspecto que torna Diario de un escritor especialmente peculiar na vida do autor está em participar ativamente de seu grande reconhecimento no final da vida. O contemporâneo Eleva Stakenhneider, que formou um dos mais prestigiados salões literários de São Petersburgo entre 1860 e 1870, o qual era frequentado por Dostoiévski, deu destaque ao fato de que ele não ficou famoso apenas pela sua prisão por 10 anos na Sibéria e por elaborar Recordação da casa dos mortos a partir dessa experiência. Mas, principalmente, por criar o Diário. “Este trabalho fez seu nome bem conhecido por toda a juventude russa e não apenas por ela, mas por todos os interessados na questão da revolução russa.” SOB POLÊMICAO Diário nasceu sob o signo da polêmica. Nele, Dostoiévski se notabilizou ao expor seu ideário, forjando pontos de vista através de tipos característicos, atitudes dramatizadas e narrando suas experiências e observações diretas. As controvérsias travadas tinham temas da ordem do dia, envolvendo questões políticas, econômicas, jurídicas, culturais e outras. Debatia com escritores como Tolstói, Nekrasov, Turgueniev, Leskov, além de críticos, pensadores e jornalistas de jornais de Moscou e São Petersburgo. Na síntese do próprio autor, a “maior meta do Diário até o momento tem sido, na medida do possível, esclarecer a ideia de nossa independência espiritual e nacional e apontá-la, representando os fatos cotidianos”.OFICINA PARA A LITERATURAA produção jornalística de Dostoiévski é fundamental para compreender a sua obra literária, determina Boris Schnaiderman, o maior especialista em Dostoiévski e um de seus tradutores no Brasil. Já Deborah Martinsen sintetiza que “muitos de seus estudiosos pelo mundo consideram o seu jornalismo uma oficina para a sua ficção”. Toda a vida de Dostoiévski está ligada ao jornalismo, e expor suas ideias era a sua prioridade, explica Schnaiderman. Tanto como articulista quanto como cronista de seu tempo, o escritor era um dos exemplos mais bem acabados da imprensa que era exercida nas principais capitais do mundo, ou seja, essencialmente opinativa. A mudança para o registro informativo dá-se apenas após a morte dele, em 1881, e se solidifica até a virada do século. Apesar da grande importância, Schnaiderman adverte que há muita “coisa chata”, especialmente quando Dostoiévski defende a política expansionista do Império Czarista. O pan-eslavismo (movimento que defendia a união de todos os povos eslavos) a que o especialista brasileiro se refere está bem exposto, por exemplo, quando o escritor defende a entrada da Rússia na Guerra dos Bálcãs contra os turcos, em 1876. “Para a guerra. Somos os mais fortes”, lança a palavra de ordem. Como se não bastasse, Dostoiévski também dá voz ao violento anti-semitismo inerente à cultura russa, redundando nos chamados pogroms ou extermínio sistemático de judeus. Para Martinsen, o jornalista era frequentemente menos convincente e palatável quando se envolveu diretamente com política. No entanto, a posição de Dostoiévski como imprensa e sua atenção para acontecimentos contemporâneos são a matéria-prima para seus grandes romances. ÉTICA E ESTÉTICAPor outro lado, na opinião de Schnaiderman, “Dostoiévski veicula jornalismo e literatura em um gênero completamente novo”. Outra qualidade que julga interessante é como ele promove uma empatia com o leitor, escrevendo como se fosse seu amigo, em plena oralidade, também exercida na obra literária. Este aspecto provocou a ira da crítica, uma vez que não estava em harmonia com o que se considerava na época o padrão das belas letras. Nesse sentido, Martinsen concorda e complementa que Dostoiévski criou um “personagem-jornalista” que faz os leitores acharem que ele é como nós: um observador a tentar orientar-se na complexidade de seu mundo. No entanto, “fez ótimo uso de um grande arsenal de estratégias retóricas. Tanto no jornalismo quanto na ficção, o romancista se engaja nas emoções de quem o lê”. No seu melhor, como destaca Martinsen, “Dostoiévski, o jornalista, usa sua experiência para dar forma romanesca às opiniões dos leitores, expandindo nossa consciência moral”. Ou seja, aqui, a crítica aponta como ele envolve as pessoas até hoje em discussões de ordem ética que povoam a modernidade. Em termos de sua atualidade, destaca-se a feliz capa da edição espanhola dos Diários, em que Dostoiévski é representado com sua imagem feita a grafite em parede de cimento com as marcas da poluição de uma metrópole moderna. HISTÓRIA E LITERATURAA presença da reportagem, e mesmo de um olhar em constante alerta, também está aparente em sua poderosa ficção. Schnaiderman cita como um dos mais pertinentes exemplo disso o romance Recordações da casa dos mortos, no qual narra em detalhes o cotidiano de seus 10 anos de prisão na Sibéria. O crítico alerta que a fronteira em que se interpenetram história e literatura está em toda a sua produção, o que a torna tão rica. Martinsen completa que, no Diario de un escritor: crónicas, artículos, crítica y apuntes, Dostoiévski revela uma visão afiada para os males sociais e ele entendeu o terrorismo a partir do interior, tendo sido membro de um grupo anticzarista radical em sua juventude. “Ele estava certo sobre muitas coisas, mas não sobre todas as coisas.”
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