segunda-feira, 25 de agosto de 2025

O cemitério de meu pai

O cemitério de meu pai

 


Paloma Amado

Foi nos anos 90, ia ser concedido o Prêmio Camões em Lisboa, onde eu estava com meus pais, hospedados no hotel Tivoli. Havia muito rebuliço no dia da reunião do júri para a premiação. Estavam, vindos do Brasil, três membros da Academia Brasileira de Letras. Vinham com cartas já marcadas, precisavam derrotar Jorge Amado, candidato que os portugueses tinham escolhido. A reunião foi feia, foram os jurados portugueses que contaram o quanto aquela troika (no linguajar deles) fora determinada, a reunião não teria um final feliz, caso insistissem no nome do baiano. Outra pessoa ganhou. Logo depois, estávamos andando pelo saguão do hotel, quando o líder do grupo brasileiro veio em nossa direção de braços abertos, gritando:

— Jorge querido, que prazer encontrá-lo aqui!

Eu, que também o tinha na minha frente, desguiei para a esquerda e subi para o meu quarto, deixando seu Jorge sozinho para acolher a mão estendida do cidadão. Daqui a pouco papai chegou rindo, me perguntou se eu tinha saído de fininho porque ficava feio negar cumprimento. Confirmei e ele riu mais ainda. Virou para mamãe e disse:


— Paloma é igualzinha a mim…

Rebati que não era, eu nunca mais cumprimentaria aquele pulha, que sempre se fizera de tão amigo. Foi então que ele me falou pela primeira vez de seu cemitério. Disse mais ou menos assim:

— Minha filha, quando eu tinha a sua idade também saía de perto e negava cumprimento. Nunca fui de dizer desaforos, pois cada um age por sua cabeça, e se a criatura quer ser um safado sem carácter, é direito dele. Você está assim agora, eu já evolui, criei meu cemitério particular.

— Cemitério, pai?

— Sim, quando o amigo se mostra um filho da puta, injusto, sem carácter, eu simplesmente o enterro no meu cemitério particular e junto com ele todo o rancor, a raiva e os maus sentimentos que um canalha desses pode fazer brotar na gente. Assim fico livre dele e do mal que pensa que me está fazendo. Eu o encontro, vem sorridente, eu o cumprimento, mas ele não sabe que estou falando com um fantasma, alguém que já não existe, que não pode me fazer mais nenhum mal.

Desde então, já se passaram mais de 30 anos, eu tento colocar as pessoas que me ferem, os falsos amigos, num cemitério meu, mas o rancor é maior, e eu fico remoendo as coisas, sofrendo, doída. Fico não, ficava!
Semana passada tive muito aperreio, muita tristeza, via a aproximação de um desfecho triste para mim devido a pessoas a quem já amei com meu sangue. Chorei um dia inteiro, daqueles choros que a gente não controla, as lágrimas pulam longe, depois escorrem, a gente funga e se pergunta porque fizeram aquilo. Dormi. Meu pai veio. Nesses 24 anos de sua ausência física, ele sempre me socorreu nos momentos mais difíceis. Pois ele veio. No sonho sentamos em torno de uma mesa colocada no jardim do Rio Vermelho, bem junto ao muro que separa sua casa da casa que foi de João, meu irmão. De mãos dadas, desabei sobre ele todas as tristezas. Ele me disse em tom sério, de quem vem do lugar em que se consolida a sabedoria da vida:

— Não se preocupe nem um minuto, minha filha. Nenhuma dessas pessoas vale uma lágrima sua, estão todas mortas. Confie em mim. Já morreram.

Acordei assustada, que sonho mais macabro, todos mortos. Depois vi que ele se referira à morte para que eu me animasse a finalmente fazer o enterro, delas e de outros mais que me tapearam pela vida afora. Sem esquecer de junto enterrar o rancor e o ressentimento. E de quebra enterrar o medo e a insegurança.

Assim eu fiz. E fiquei alegre, em paz de uma maneira que eu não me sentia há muito tempo.

Então saí da toca e fui encontrar amigos realmente queridos. Levei Jamil Chade para visitar a casa do Rio Vermelho, conversamos, demos risadas, trocamos carinhos. Finalmente aceitei o convite de Lícia Fábio (que é uma querida, quer me ver bem e insiste faz é tempo para eu sair de casa ) e fui jantar com ela, Fafá de Belém e Mariana, que não via há anos. Nesta última sexta-feira voltei à Rua Alagoinhas levando Margareth Dalcomo (o Sol que nos iluminou durante a pandemia e continua nos iluminando), que eu não conhecia pessoalmente, mas com quem convivo no Libeli , grupo do Afonso, e de quem sou uma ardorosa admiradora. E ela ainda trouxe sua irmã Beth, outra pessoa linda e querida. Mostrar minha casa para elas, contar minhas histórias, ouvir as suas foi especial. Foi tão maravilhoso, penso que viramos amigas de infância! Como a vida é generosa comigo!
Ia esquecendo! No meio disso tudo foi meu aniversário de 74 anos. Tive a festa surpresa anual feita com carinho pela comadre Gal com ajuda de Beto, mas pedi que fosse mais cedo esse ano, pois tive que fazer nesse dia uma pequena cirurgia (presente de aniversário!). Aproveito a crônica para agradecer aos muitos amigos que se manifestaram por aqui, fiquei feliz com cada palavra. Obrigada, amigas e amigos.

A amizade sempre será o sal da vida, e se alguma coisa estragada quiser se misturar nesse tempero, o melhor é catar, jogar fora no lixo e esquecer que existe.

Bom domingo a todos.

Em tempo: contei do cemitério de papai porque ele mesmo o fez no livro Navegação de Cabotagem. Escreveu assim:

Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, ante-salas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo. Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram minha estima e a perderam.

Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério — nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau caráter. Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.

Raros enterros — ainda bem! — de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipó­crita, arrogante — a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei da vida.

Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado.

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