Paloma Amado
Foi nos anos 90, ia ser concedido o Prêmio Camões
em Lisboa, onde eu estava com meus pais, hospedados no hotel Tivoli. Havia
muito rebuliço no dia da reunião do júri para a premiação. Estavam, vindos do
Brasil, três membros da Academia Brasileira de Letras. Vinham com cartas já
marcadas, precisavam derrotar Jorge Amado, candidato que os portugueses tinham
escolhido. A reunião foi feia, foram os jurados portugueses que contaram o
quanto aquela troika (no linguajar deles) fora determinada, a reunião não teria
um final feliz, caso insistissem no nome do baiano. Outra pessoa ganhou. Logo
depois, estávamos andando pelo saguão do hotel, quando o líder do grupo
brasileiro veio em nossa direção de braços abertos, gritando:
— Jorge querido, que prazer encontrá-lo aqui!
Eu, que também o tinha na minha frente, desguiei
para a esquerda e subi para o meu quarto, deixando seu Jorge sozinho para
acolher a mão estendida do cidadão. Daqui a pouco papai chegou rindo, me
perguntou se eu tinha saído de fininho porque ficava feio negar cumprimento.
Confirmei e ele riu mais ainda. Virou para mamãe e disse:
— Paloma é igualzinha a mim…
Rebati que não era, eu nunca mais cumprimentaria
aquele pulha, que sempre se fizera de tão amigo. Foi então que ele me falou
pela primeira vez de seu cemitério. Disse mais ou menos assim:
— Minha filha, quando eu tinha a sua idade também
saía de perto e negava cumprimento. Nunca fui de dizer desaforos, pois cada um
age por sua cabeça, e se a criatura quer ser um safado sem carácter, é direito
dele. Você está assim agora, eu já evolui, criei meu cemitério particular.
— Cemitério, pai?
— Sim, quando o amigo se mostra um filho da puta,
injusto, sem carácter, eu simplesmente o enterro no meu cemitério particular e
junto com ele todo o rancor, a raiva e os maus sentimentos que um canalha
desses pode fazer brotar na gente. Assim fico livre dele e do mal que pensa que
me está fazendo. Eu o encontro, vem sorridente, eu o cumprimento, mas ele não
sabe que estou falando com um fantasma, alguém que já não existe, que não pode
me fazer mais nenhum mal.
Desde então, já se passaram mais de 30 anos, eu
tento colocar as pessoas que me ferem, os falsos amigos, num cemitério meu, mas
o rancor é maior, e eu fico remoendo as coisas, sofrendo, doída. Fico não,
ficava!
Semana passada tive muito aperreio, muita tristeza, via a aproximação de um
desfecho triste para mim devido a pessoas a quem já amei com meu sangue. Chorei
um dia inteiro, daqueles choros que a gente não controla, as lágrimas pulam
longe, depois escorrem, a gente funga e se pergunta porque fizeram aquilo.
Dormi. Meu pai veio. Nesses 24 anos de sua ausência física, ele sempre me
socorreu nos momentos mais difíceis. Pois ele veio. No sonho sentamos em torno
de uma mesa colocada no jardim do Rio Vermelho, bem junto ao muro que separa
sua casa da casa que foi de João, meu irmão. De mãos dadas, desabei sobre ele
todas as tristezas. Ele me disse em tom sério, de quem vem do lugar em que se
consolida a sabedoria da vida:
— Não se preocupe nem um minuto, minha filha. Nenhuma dessas pessoas vale uma
lágrima sua, estão todas mortas. Confie em mim. Já morreram.
Acordei assustada, que sonho mais macabro, todos
mortos. Depois vi que ele se referira à morte para que eu me animasse a
finalmente fazer o enterro, delas e de outros mais que me tapearam pela vida
afora. Sem esquecer de junto enterrar o rancor e o ressentimento. E de quebra
enterrar o medo e a insegurança.
Assim eu fiz. E fiquei alegre, em paz de uma
maneira que eu não me sentia há muito tempo.
Então saí da toca e fui encontrar amigos realmente
queridos. Levei Jamil Chade para visitar a casa do Rio Vermelho, conversamos,
demos risadas, trocamos carinhos. Finalmente aceitei o convite de Lícia Fábio
(que é uma querida, quer me ver bem e insiste faz é tempo para eu sair de casa
) e fui jantar com ela, Fafá de Belém e Mariana, que não via há anos. Nesta
última sexta-feira voltei à Rua Alagoinhas levando Margareth Dalcomo (o Sol que
nos iluminou durante a pandemia e continua nos iluminando), que eu não conhecia
pessoalmente, mas com quem convivo no Libeli , grupo do Afonso, e de quem sou
uma ardorosa admiradora. E ela ainda trouxe sua irmã Beth, outra pessoa linda e
querida. Mostrar minha casa para elas, contar minhas histórias, ouvir as suas
foi especial. Foi tão maravilhoso, penso que viramos amigas de infância! Como a
vida é generosa comigo!
Ia esquecendo! No meio disso tudo foi meu aniversário de 74 anos. Tive a festa
surpresa anual feita com carinho pela comadre Gal com ajuda de Beto, mas pedi
que fosse mais cedo esse ano, pois tive que fazer nesse dia uma pequena
cirurgia (presente de aniversário!). Aproveito a crônica para agradecer aos
muitos amigos que se manifestaram por aqui, fiquei feliz com cada palavra.
Obrigada, amigas e amigos.
A amizade sempre será o sal da vida, e se alguma
coisa estragada quiser se misturar nesse tempero, o melhor é catar, jogar fora
no lixo e esquecer que existe.
Bom domingo a todos.
Em tempo: contei do cemitério de papai porque ele
mesmo o fez no livro Navegação de Cabotagem. Escreveu assim:
Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as
salas de espera, ante-salas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores
perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo. Possuo, no entanto, um
cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida
me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles
que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram minha estima
e a perderam.
Quando um tipo vai além de todas as medidas e de
fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não
brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum
de meu cemitério — nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os
mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau caráter.
Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.
Raros enterros — ainda bem! — de um pérfido, de um
perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por
demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante — a impostura e a presunção
me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um
pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e
outras varri da memória, retirei da vida.
Encontro na rua um desses fantasmas, paro a
conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o
abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez
me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado.
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