domingo, 31 de agosto de 2025

AGOSTO AMADO, EM 1975

 

Foto Acervo José Nazal
Tempo de leitura: 4 minutos

 

 

 

Por tanto, comemoramos hoje os 50 anos da volta do nosso Amado Jorge a conviver com Ilhéus. Com ele e Zélia, vieram João Jorge e Dora, filho e nora; Paloma, filha; James e Luiza, irmão e cunhada; Calazans Neto e Auta Rosa, amigos íntimos.

 

 

José Nazal Pacheco Soub

No mês de agosto de 1912, nasceu Jorge Amado. No mês de agosto de 1975, Jorge Amado voltou a conviver com Ilhéus, como amigos de longas data e muitos admiradores. No mês de agosto de 2001, faleceu Jorge Amado.

A importância desse escritor para Ilhéus é imensurável. Penso eu que todas as homenagens já lhe feitas e as que vierem são poucas para devolver a Jorge o quão bem ele fez a nossa terra, tornando-a conhecida em quase todos os confins da Terra. Seu nome está registrado na Rua Jorge Amado, Casa Jorge Amado, Rodovia Jorge Amado, Dia Jorge Amado, Mirante Jorge Amado, Ponte Jorge Amado, Rotary Clube Jorge Amado e Escola Jorge Amado. Parece muito, mas é pouco, se comparado com o número de dezenas de países, milhares de cidades e milhões de leitores que tiveram conhecimento de que Ilhéus existe e que é uma terra cheia de história, magia, de um povo maravilhoso.

Dentre os romances brotados da mente brilhante do grapiúna Amado, nascido em Itabuna e crescido em Ilhéus, talvez o mais importante e conhecido seja Gabriela, Cravo e Canela, lançado em 1958, quando o Brasil vivia os anos dourados do governo de Juscelino Kubitscheck, mas com o cacau atravessando momentos de crise, resultando na criação da CEPLAC. O romance caiu como uma bomba, causando grande frisson entre a sociedade ilheuense, que tentava identificar quem seria cada personagem do livro com alguém da cidade.

Depois do sucesso de Gabriela, Jorge Amado e Zélia Gattai visitaram Ilhéus em 1960, trazendo o casal Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre para conhecer nossa cidade. Fizeram visita ao porto em construção, uma fazenda de cacau, na companhia de Wilson Rosa e Moisés Alves, e encerraram o dia jantando a convite de Sá Barreto, na residência do casal Anacélia e João Diogo Soub, na então Avenida Bahia, Cidade Nova.

Meses após essa visita do casal Amado a Ilhéus, o cronista água-pretense Jorge Emílio Medauar escreveu uma matéria em revista de circulação nacional, muito famosa na época, ligando os personagens do livro a pessoas da vida real, causando um grande alvoroço na conservadora sociedade ilheuense, com muita gente se sentindo ofendida. A partir desse episódio, os dois Jorge passaram a ser malvistos pelas famílias cujos nomes apareceram na matéria. Daí em diante não mais voltaram a Ilhéus.

Em 1974, a Rede Globo decidiu reproduzir a história do gringo Nacib e da retirante Gabriela em novela e, para tanto, deram início às pesquisas, resultando na visita da equipe técnica da emissora à terra do Vesúvio, do Bataclan e do cacau. Lembro-me com segurança do momento em que estiveram na residência de minha avó Esther, na Boa Vista. Foram Walter George Durst, Walter Avancini, Edwaldo Pacote, Kaká e Mário Monteiro, dentre outros. A novela não foi gravada em Ilhéus, e sim numa cidade cenográfica, salvo engano, em Guaratiba, Rio de Janeiro. Reproduziram fielmente o traçado das ruas e das construções, com base em antigas fotos da cidade.

A novela foi ao ar em 1975, com sucesso absoluto de audiência, especialmente em Ilhéus, sendo estrelada por Sonia Braga e Armando Bogus, levando o nome de Ilhéus a todos os recantos do Brasil. Com o advento desse sucesso, Raymundo Pacheco Sá Barretto, o “último dos coronéis”, segundo Jorge Amado, escreveu para o seu amigo, convidando-o para receber homenagens em Ilhéus. Em 29 de julho, Jorge confirmou que aceitaria, sugerindo os três finais de semana de agosto como opção. Ficou acertado para os dias 30 e 31 de agosto.

Por tanto, comemoramos hoje os 50 anos da volta do nosso Amado Jorge a conviver com Ilhéus. Com ele e Zélia, vieram João Jorge e Dora, filho e nora; Paloma, filha; James e Luiza, irmão e cunhada; Calazans Neto e Auta Rosa, amigos íntimos. Vieram também os atores globais: Paulo Gracindo, Sônia Braga, Armando Bogus, Elizabeth Savalla, Marcos Paulo, Ana Maria Magalhães, Fúlvio Stefanini, Rafael de Carvalho, Jorge Cherques. Todos ficaram hospedados no Britânia Hotel.

No sábado (30), houve um jantar no Clube Social de Ilhéus e, no domingo (31), festa com a colocação da placa na Rua Jorge Amado, na Boa Vista (somente depois houve a troca com a rua 28 de junho), além de uma escultura do artista plástico Tatti Moreno, infelizmente destruída por vândalos. Tive a honra e o privilégio de registrar o feliz momento.

De lá para cá, Jorge veio algumas vezes a Ilhéus, a convite oficial ou por iniciativa pessoal, sempre acompanhando Sá Barretto, eu estive junto. Uma das vezes, o casal Zélia e Jorge não pisaram na cidade, pois estavam a bordo do Funchal, seguindo para a Europa. Convidaram Sá Barretto para o café e lá fui eu a reboque. Entramos no navio às 8h e o café se estendeu até às 12h. Foi um momento ímpar, indescritível. O que mais me impressionou foi o tanto de assunto que conversaram, que reviveram. Agradeço a Deus por tanto e por tanta dádiva.

José Nazal Pacheco Soub é fotógrafo, memorialista e autor do livro Minha Ilhéus – Fotografias do Século XX e um pouco de nossa história, lançado pela Via Litterarum.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A Cronica de Walmir Rosário - Direto de Canavieiras

 

PROFESSORES “DÃO AULA A ALUNOS” NO BABY BEEF

Prédio e equipe do lendário Baby Beef de Itabuna

Por Walmir Rosário*

Eu sempre utilizo um ditado como modo de conduta: “Não vou a tudo em que sou convidado, muito menos onde sequer fui lembrado”. Por todo esse tempo esse costume não me causou qualquer arrependimento ou dissabor. Sei que não sou um bom conselheiro, pois me faltam predicados, embora não me furte a dar algumas dicas sobre os riscos que podem acometer aos penetras.

Outro comportamento que faz bem a qualquer desprevenido é não aparecer em locais nos quais seus bolsos são desqualificados, monetariamente. Em tempos passados, o velho talão de cheque poderia quebrar um galho no acerto de contas, embora nos dias seguintes fosse ele convidado a comparecer ao banco com os recursos para o competente depósito e cobrir o cheque voador. Hoje não mais, o cartão de crédito é rejeitado na hora e o Pix nem por sonho.

Durante toda a minha vida convivi com amigos de todos os comportamentos. Uns mais afoitos e de boa lábia, cujo poder de convencimento quebrava o mau humor do dono do estabelecimento e o permitia assinar um vale de quitação duvidosa. Um deles, após muitos goles de cachaça e cerveja, não contou conversa e puxou do bolso um talão de cheque e o preencheu com o valor da conta da mesa. Só que era a folha da requisição do talão de cheques, conforme ficou sabendo na segunda-feira, com a visita do dono do bar.

Desses casos coleciono algumas dúzias, mas um deles me chamou a atenção, e dia desses, ainda me fez lembrá-lo o colega causídico Antônio Apóstolo. Éramos estudantes de Direito, nos velhos tempos da Fespi, depois Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Estávamos no saudoso Baby Beef, disparado o melhor restaurante que Itabuna “já teve”.

Numa mesa, dois de nossos professores da faculdade, um deles recém-conhecido de dois colegas do curso. Ambos de uma pequena cidade do Recôncavo, e entraram no Baby Beef apenas para conhecer o restaurante, conceituado pelo serviço, comidas e bebidas. O certo é que ficaram embasbacados e começaram a circular entre as mesas, verificando as iguarias.

Ao se depararem com os ilustres professores, na maior inocência resolveram cumprimentá-los. Ao serem reconhecidos, os mestres responderam às saudações e um pequeno bate-papo foi estabelecido. Por educação, acredito, foram convidados a sentar-se à mesa e os visitantes não fizeram cerimônia. O garçom logo providenciou duas taças e pratos para o couvert.

Durante um bom tempo da noite de sexta-feira o quarteto conversou sobre a qualidade do vinho Liebfraumilch (garrafa azul), da comida, e da qualidade dos restaurantes de Itabuna, da faculdade e do que mais lhes apeteciam. E num restaurante da categoria do Baby Beef os solícitos maitre e garçons atentos à mesa, a abasteciam com muita frequência. Comeram um Peixe à Belle Meunière, que consideraram comida dos deuses.

Um pouco depois da meia-noite, bem satisfeitos, os professores elogiam a bela noitada num restaurante de primeira linha e anunciam que iriam embora, pois naquele sábado teriam que ministrar aulas logo nos primeiros horários. Pedem a conta e a conferem assim que chega. Num simples cálculo promovem a divisão equitativa, ou seja, fracionam o total entre os quatros participantes.

Os dois convidados começaram a gaguejar e suar frio, pedindo desculpas por se encontrarem desprevenidos de recursos, em dinheiro ou outro meio de pagamento, pois tinham ido ao Baby Beef apenas para conhecer o conceituado ambiente. Os professores não contaram conversa, pagaram as suas partes e avisaram aos dois alunos que resolvessem o problema com o maitre e partiram.

Atônitos, os dois se dirigiram ao balcão e quase em prantos relataram que não eram de Itabuna, embora gente de bem, estudantes de direito na Fespi, filhos de boas famílias e o único recurso para solucionar o problema seria fazer uma ligação telefônica para a família de um deles. Era a época do telefone fixo, e àquela hora ligaram para o pai, relatando o ocorrido, sendo liberados após a garantia de uma ordem de pagamento urgente na próxima segunda-feira.

No dia seguinte, na primeira aula, às 7h30min, o professor de Direito Civil, o então juiz do Trabalho Érito Machado (depois desembargador presidente do TRT-5), escreveu no quadro os temas da aula, virou-se para os alunos e disse: “Aqui tem uns caipiras que chegaram ao Baby Beef, em Itabuna, sem dinheiro para pagar a conta, como se estivessem na pensão de sua cidadezinha”.

Em seguida, deu início à aula, criando uma apreensão entre os alunos, ávidos em saber quais seriam os personagens descritos pelo mestre. Depois desta lição, nunca mais saíram desprevenidos, financeiramente, para uma noitada, mesmo de reconhecimento.


*Radialista, jornalista e advogado.

Um paralelo entre o clássico do “Pequeno Príncipe” e as palavras de Papa Wojtyla

Um paralelo entre o clássico do “Pequeno Príncipe” e as palavras de Papa Wojtyla



Publicado pela primeira vez em 1943, ‘O Pequeno Príncipe’, apesar de destinado ao público infantil, se tornou um clássico para todas as idades.

O livro narra o encontro de um piloto de avião com um menino, habitante de um asteroide, que viaja pelo universo. Com diálogos cheios de reflexões, a obra tem como um dos temas centrais o valor da amizade. 

“Quero o bem para ti, como o quero para mim” é a fórmula que poderia definir a amizade, segundo Karol Wojtyla em sua obra “Amor e Responsabilidade”.

Para ele, a amizade “consiste num compromisso da vontade a respeito de outra pessoa, em atenção ao seu bem”. É um processo que exige “reflexão e tempo”. O autor difere a amizade da camaradagem, e ressalta que colegas/camaradas podem ser muitos, enquanto amigos pertencem a um grupo mais seleto.

“Foi o tempo que perdestes com a tua rosa que a fez tão importante”, diz a raposa ao menino. Para Wojtyla, esse é o primeiro ponto: o compromisso da vontade. 

O principezinho compreende que a rosa era diferente de todas as outras por simplesmente ser ela. Ele poderia olhar para muitas outras, mas a sua era única. Mesmo as suas falhas, queixas e vaidades não a diminuíram. Ela era irrepetível. Isso lhe motivava a se determinar por ela, e a amá-la de forma concreta, lhe dedicando o seu tempo. 

Uma amizade verdadeira se inicia quando os amigos se entendem como pessoas únicas e irrepetíveis, dignas de um compromisso da vontade, de uma determinação, justamente por serem quem são. 

O amigo é aquele que é capaz desse olhar diferente: consegue contemplar o mistério da pessoa, e por isso não quer “desperdiçar” o outro. Entende bem a máxima de Jesus: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos (cf. Jo 15,13)." 

Mas não basta a determinação, é necessário ter em vista qual é a sua finalidade: segundo Wojtyla, a atenção ao bem do amigo. 

Qual é o bem supremo pelo qual ansiamos com todo o nosso coração?

O próprio Deus. 

O verdadeiro amigo deseja ao outro a comunhão com a Trindade, e luta para que a encontre. A verdadeira amizade tem como maior preocupação a salvação e santificação dos amigos. Isso se dá porque se possui a compreensão de que o amigo é alguém único, criado para o amor e de quem sou responsável pelo dom que é e que a mim foi confiado. 

Aqui está o terceiro ponto fundamental: a responsabilidade. 

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa...”. De início esta frase pode assustar e parecer coercitiva. Mas, Wojtyla nos explica que todo ato de amor implica responsabilidade. Se amamos, somos responsáveis, chamados a criar a “consciência do dom recebido, que deve ser guardado”. 

Diante dos nossos amigos não podemos ter uma compreensão diferente. Aquele que está diante de mim não é algo, mas alguém. Alguém que carrega um mistério, incomunicável, que nem ele entende plenamente, e que deve ser reverenciado ao ser amado, ou seja, em um compromisso da vontade que visa o seu bem

R.I.P. Íris Lettieri

Íris Lettieri

 


Íris Lettieri Costa (Rio de Janeiro26 de agosto de 1941 – Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2025) foi uma locutora brasileira, que no passado já atuou também como cantoraatriz e modelo. Primeira mulher a atuar como locutora de telejornais no País, "a voz do aeroporto" com seu estilo indiscutível, marca e destaca comerciais de produtos e serviços no rádio, na televisão e nos vídeos de todo o Brasil.[1]

Biografia

Filha única do alagoano José Avelino da Costa, um ex-locutor da antiga Rádio Cruzeiro do Sul, e da potiguar Josélia Lettieri, uma professora de piano, teoria, harmonia, canto e dicção.[2] Seu avô materno, Guglielmo Lettieri, foi cônsul honorário da Itália em Natal durante a Segunda Guerra Mundial, tendo sido condenado a catorze anos de prisão por espionagem.[3][4]

Começou sua carreira como locutora de rádio, no final dos anos 50, tendo posteriormente trabalhado também como locutora de telejornais na TV Tupi do Rio, na locução do telejornal Perspectiva e mais tarde no Rede Tupi de Notícias. Fez parte do primeiro time do Jornal da Manchete da Rede Manchete, em 1983, que em seus primeiros meses era transmitido por 3 horas. Íris apresentava, junto com Jacyra Lucas, as notícias de cultura e entretenimento. Em 1984 passou a entrar no ar, como apresentadora do Manchete Panorama, antes do Manchete Esportiva, quando o Jornal da Manchete se desmembrou em programas temáticos. No ano seguinte, seu programa foi extinto. Íris ainda participou do Programa de Domingo, da mesma Rede Manchete.[2]


Ficou mais conhecida como "a voz do aeroporto", pois da década de 1970 até a sua morte foi a locutora oficial do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (conhecido como Galeão ou Antonio Carlos Jobim), do Aeroporto Internacional de São Paulo - Guarulhos e outros quatro aeroportos. Seu timbre aveludado era inconfundível, passando uma sensação de tranquilidade e até mesmo sensualidade.[1] Íris afirmou ter criado essa entonação de voz para a locução feita nos aeroportos propositalmente, visando a acalmar os passageiros que têm medo de voar. Sua voz, por ser tão peculiar, já foi assunto de várias reportagens na imprensa internacional.

Em 1992, o conjunto musical americano Faith No More incluiu, sem a permissão de Íris, a gravação de sua voz na faixa Crack Hitler, do CD Angel Dust. Íris Lettieri tentou processar o grupo, porém sem sucesso.[5]

Íris também fez gravações de anúncios de próxima parada para o sistema BRT do Rio de Janeiro em 2016, que à época era composto dos corredores TransOeste e TransCarioca.[6]


Morreu na tarde de 28 de agosto de 2025 aos 84 anos, vítima de um infarto fulminante.[7]

Prêmios

·         Melhor locutora[carece de fontes]

·         Melhor apresentadora de telejornais[carece de fontes]

·         Personalidade Aeroportuária, concedido pela Infraero (1995)

·         Abrajet - Rio - Selo de Qualidade do Conselho de Turismo (1995)

·         Medalha Pedro Ernesto, concedido pela Câmara dos Vereadores - a mais importante comenda ofertada pela Cidade do Rio de Janeiro (1996)

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

O cemitério de meu pai

O cemitério de meu pai

 


Paloma Amado

Foi nos anos 90, ia ser concedido o Prêmio Camões em Lisboa, onde eu estava com meus pais, hospedados no hotel Tivoli. Havia muito rebuliço no dia da reunião do júri para a premiação. Estavam, vindos do Brasil, três membros da Academia Brasileira de Letras. Vinham com cartas já marcadas, precisavam derrotar Jorge Amado, candidato que os portugueses tinham escolhido. A reunião foi feia, foram os jurados portugueses que contaram o quanto aquela troika (no linguajar deles) fora determinada, a reunião não teria um final feliz, caso insistissem no nome do baiano. Outra pessoa ganhou. Logo depois, estávamos andando pelo saguão do hotel, quando o líder do grupo brasileiro veio em nossa direção de braços abertos, gritando:

— Jorge querido, que prazer encontrá-lo aqui!

Eu, que também o tinha na minha frente, desguiei para a esquerda e subi para o meu quarto, deixando seu Jorge sozinho para acolher a mão estendida do cidadão. Daqui a pouco papai chegou rindo, me perguntou se eu tinha saído de fininho porque ficava feio negar cumprimento. Confirmei e ele riu mais ainda. Virou para mamãe e disse:


— Paloma é igualzinha a mim…

Rebati que não era, eu nunca mais cumprimentaria aquele pulha, que sempre se fizera de tão amigo. Foi então que ele me falou pela primeira vez de seu cemitério. Disse mais ou menos assim:

— Minha filha, quando eu tinha a sua idade também saía de perto e negava cumprimento. Nunca fui de dizer desaforos, pois cada um age por sua cabeça, e se a criatura quer ser um safado sem carácter, é direito dele. Você está assim agora, eu já evolui, criei meu cemitério particular.

— Cemitério, pai?

— Sim, quando o amigo se mostra um filho da puta, injusto, sem carácter, eu simplesmente o enterro no meu cemitério particular e junto com ele todo o rancor, a raiva e os maus sentimentos que um canalha desses pode fazer brotar na gente. Assim fico livre dele e do mal que pensa que me está fazendo. Eu o encontro, vem sorridente, eu o cumprimento, mas ele não sabe que estou falando com um fantasma, alguém que já não existe, que não pode me fazer mais nenhum mal.

Desde então, já se passaram mais de 30 anos, eu tento colocar as pessoas que me ferem, os falsos amigos, num cemitério meu, mas o rancor é maior, e eu fico remoendo as coisas, sofrendo, doída. Fico não, ficava!
Semana passada tive muito aperreio, muita tristeza, via a aproximação de um desfecho triste para mim devido a pessoas a quem já amei com meu sangue. Chorei um dia inteiro, daqueles choros que a gente não controla, as lágrimas pulam longe, depois escorrem, a gente funga e se pergunta porque fizeram aquilo. Dormi. Meu pai veio. Nesses 24 anos de sua ausência física, ele sempre me socorreu nos momentos mais difíceis. Pois ele veio. No sonho sentamos em torno de uma mesa colocada no jardim do Rio Vermelho, bem junto ao muro que separa sua casa da casa que foi de João, meu irmão. De mãos dadas, desabei sobre ele todas as tristezas. Ele me disse em tom sério, de quem vem do lugar em que se consolida a sabedoria da vida:

— Não se preocupe nem um minuto, minha filha. Nenhuma dessas pessoas vale uma lágrima sua, estão todas mortas. Confie em mim. Já morreram.

Acordei assustada, que sonho mais macabro, todos mortos. Depois vi que ele se referira à morte para que eu me animasse a finalmente fazer o enterro, delas e de outros mais que me tapearam pela vida afora. Sem esquecer de junto enterrar o rancor e o ressentimento. E de quebra enterrar o medo e a insegurança.

Assim eu fiz. E fiquei alegre, em paz de uma maneira que eu não me sentia há muito tempo.

Então saí da toca e fui encontrar amigos realmente queridos. Levei Jamil Chade para visitar a casa do Rio Vermelho, conversamos, demos risadas, trocamos carinhos. Finalmente aceitei o convite de Lícia Fábio (que é uma querida, quer me ver bem e insiste faz é tempo para eu sair de casa ) e fui jantar com ela, Fafá de Belém e Mariana, que não via há anos. Nesta última sexta-feira voltei à Rua Alagoinhas levando Margareth Dalcomo (o Sol que nos iluminou durante a pandemia e continua nos iluminando), que eu não conhecia pessoalmente, mas com quem convivo no Libeli , grupo do Afonso, e de quem sou uma ardorosa admiradora. E ela ainda trouxe sua irmã Beth, outra pessoa linda e querida. Mostrar minha casa para elas, contar minhas histórias, ouvir as suas foi especial. Foi tão maravilhoso, penso que viramos amigas de infância! Como a vida é generosa comigo!
Ia esquecendo! No meio disso tudo foi meu aniversário de 74 anos. Tive a festa surpresa anual feita com carinho pela comadre Gal com ajuda de Beto, mas pedi que fosse mais cedo esse ano, pois tive que fazer nesse dia uma pequena cirurgia (presente de aniversário!). Aproveito a crônica para agradecer aos muitos amigos que se manifestaram por aqui, fiquei feliz com cada palavra. Obrigada, amigas e amigos.

A amizade sempre será o sal da vida, e se alguma coisa estragada quiser se misturar nesse tempero, o melhor é catar, jogar fora no lixo e esquecer que existe.

Bom domingo a todos.

Em tempo: contei do cemitério de papai porque ele mesmo o fez no livro Navegação de Cabotagem. Escreveu assim:

Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, ante-salas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo. Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram minha estima e a perderam.

Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério — nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau caráter. Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.

Raros enterros — ainda bem! — de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipó­crita, arrogante — a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei da vida.

Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado.