quinta-feira, 31 de outubro de 2024

GUERRA E PAZ, A EMOÇÃO DO FUTEBOL - A Cronica de Walmior Rosário - Direto de Canavieiras

 

GUERRA E PAZ, A EMOÇÃO DO FUTEBOL

 
Comemoração de gol contra o Peñarol - foto Vitor Silva-Botafogo

Por Walmir Rosário*

O futebol é um esporte que sempre mexeu com emoções. Da equipe de um simples time de várzea ao do selecionado de um país, torcedores dão a vida – se preciso – pela sua agremiação. Mesmo hoje, que o futebol é um esporte que mexe com bilhões, as torcidas seguem seus times, apesar dos ingressos com preços estratosféricos e a falta do amor à camisa, como dantes.

De há muito o futebol é um esporte apaixonante em praticamente todos os países deste mundo e, quem sabe, dia desses consegue ultrapassar o futebol americano, beisebol e o basquete, nos Estados Unidos, e o críquete, nos países de descendência e influência inglesa. Mesmo sendo um dos apaixonados pelo futebol, não sei a influência dele sobre nosso emocional.

Também pouco importa. O que quero mesmo é ver meu time ganhar, ser campeão. Sinto bastante quando minguam as vitórias, escapam as classificações, ficamos de fora da final de um campeonato. E vou avisando: não tolero ser vice, apesar de muitos elogiarem a segunda posição. E ainda por cima afirmarem que é o melhor depois do primeiro. Não concordo.

Pelo dito até agora, os que passaram os olhos por essas mal traçadas linhas já devem ter desconfiado que sou torcedor do Botafogo. Botafoguense com muito orgulho, persistente até não acabar mais. Não posso deixar de lado o bordão “tem coisas que só acontecem com Botafogo”, pois é verdade aqui e no Uruguai, mesmo sem termos culpa no cartório.

Imaginem o Brasil declarar guerra ao nosso vizinho do Sul, que já foi nosso, e sempre se rebela contra nós. Pelo tamanho do seu território não suportaria um confronto armado, mas que sempre provoca. Pelas minhas especulações, esses uruguaios acreditam que como ganharam de nós em 1950, ainda num Maracanã cheirando a tinta, teriam a obrigação de nos massacrar até hoje.

Tenho certeza que a culpa de tudo isso é do nosso ordeiro povo brasileiro, que não os repeliu com veemência naquela copa do mundo. Em 1950, os uruguaios venceram apenas uma copa, não uma guerra, mas queriam o “botim”, como nos bons tempos da Roma antiga, fazendo dos vencidos escravos, serviçais. Se estou certo nas minhas convicções estudaram a história de forma errada.

Gosto muito do Uruguai, dos seus vinhos, carnes maravilhosas preparadas nos braseiros, das cidades tranquilas, incluindo Montevidéu. Mas não gostei nada da guerra particular que tentaram empreender contra o Botafogo. Costumo ouvir dizer que os cisplatinos têm sangue quente, não toleram perder, ainda mais no futebol. E por 5X0, então, queimou o churrasco na Libertadores da América.

Não tenho certeza, mas ao que me parece, esses uruguaios são desinformados. Como não conhecer o poderio futebolístico do Botafogo? Ora, deveriam ter dado graças a Deus por não ter tomado uma goleada de nove, dez a zero, daquelas que o Botafogo aplicava contra o Flamengo. O pecado cometido pelos cisplatinos foi querer comparar o Botafogo com o Flamengo que eles despacharam.

Mas nada do que fizeram se justifica. Um papelão horrendo! Sabiam que não seriam punidos por ameaçar os brasileiros – torcedores do Botafogo – que como turistas costumam encher o Uruguai de dólares todos os anos. Confiavam no ombro amigo da Conmebol, onde choraram suas pitangas e ganharam amparo e afagos.

Como botafoguense não sou torcedor de reclamar de pouca coisa. Tenho o couro cascudo desde a velha rivalidade entre as seleções de Ilhéus e Itabuna, ainda nos tempos em que reclamávamos dos paus e pedras jogados contra nós quando passávamos em baixo do viaduto Catalão ou no estádio. Também íamos à busca da forra, dentro e fora de campo.

Não posso esquecer que no futebol também se faz amigos, e muitos. Um caso clássico é o que aconteceu na África, em 1969, quando o Congo e a República Democrática do Congo silenciaram as armas durante uma guerra, para que o Santos de Pelé pudesse cruzar o país para jogar nos dois lados da fronteira. E não foi só isso.

No mesmo ano, durante a guerra entre a Nigéria e a separatista Biafra, o Santos jogou em Benin. Para que isto acontecesse, os dois antagonistas decretaram feriado, bem como o cessar fogo, para que o Santos de Pelé se apresentasse. Acredito que os uruguaios faltaram essa aula de história das guerras africanas e deixaram o professor na sala falando sozinho.

Mas vamos ao que interessa, o Botafogo jogará nesta quarta-feira contra o Peñarol no estádio Centenário, apesar das ameaças. Eu não recomendo e nem apostaria um centavo na vitória do Peñarol. O Botafogo só precisa de muita calma nesta partida para não entrar nas provocações e sair de Montevidéu com outra vitória e se preparar para depenar o galo.

A melhor arma do futebol é fazer a bola entrar nas redes adversárias.

*Radialista, jornalista e advogado


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

A Crônica de Walmir Rosário - Direto de Canavieiras

 

TOLÉ PARTIU SEM AVISO-PRÉVIO

Antônio Amorim Tolentino (Tolé) Foto Robson Nascimento

Por Walmir Rosário*

Domingo (27-10) em Canavieiras, dia de pleno sol, próprio para a praia, a cerveja com os amigos, as partidas de futebol, e o mais importante: as discussões entre os torcedores. Meu velho amigo Antônio Amorim Tolentino, Tolé, para todos, não participou de nada disso, preferiu viajar e tomou o caminho sem avisar a ninguém, nem aos amigos mais chegados e familiares. Simplesmente partiu.

Eu fui surpreendido pelo amigo em comum Luiz Sena, que aos prantos me pedia para confirmar ser verdade o passamento de Tolé. Eu ainda nem sabia deste triste acontecimento. Tolé era uma espécie de tutor de Sena, que chegou ainda rapazinho no Banco do Brasil em Canavieiras.

Pelo visto, deve ter sido interpelado por São Pedro ao bater à porta do Céu, para prestar contas de sua passagem por esse mundo. E foi preparado, vestindo uma vistosa camisa do Flamengo, seu time de coração. Desconheço se São Pedro gosta de futebol, mas Tolé deve ter dito que empreendeu a viagem para assistir de cima a disputa da Copa Brasil, com uma visão privilegiada.

Por certo, após os santos questionamentos, saberá convencer o chaveiro do Céu. Apesar de não ser um católico praticante e se considerar amigo chegado de São Boaventura, pois morava ao lado da Igreja, sabia como ninguém o que se passava no templo, sem precisar subir os degraus da matriz. Ouvia tudo pelo rádio ou por meio dos amigos.

Em sua defesa deve constar nos livros de São Pedro suas ações pró São Boaventura, desde as discussões sobre o verdadeiro dia da homenagem ao Santo-Doutor da Igreja Católica passando pelas comemorações profanas. Deve estar lá anotado, quando em plena pandemia, Matriz fechada, ele se encarregou, junto aos vizinhos, de promover a lavagem das escadarias, portando baldes com água, vassouras e água de cheiro.

Tolé era (acredito que ainda é) uma daquelas figuras que nunca se esquece. Quando ainda fazia parte da alta boemia canavieirense, se tornou um colega de farra imprescindível em qualquer festejo. Um dos fundadores da Confraria d’O Berimbau, lavrava as atas semanais e ainda se atinha ao caixa nos devaneios de Neném de Argemiro, para não permitir que, por pressa ou esquecimento, alguém saísse sem proceder ao devido pagamento.

Membro da Galeota Ouro, Tolé era figura de proa na organização do maior evento turístico etílico e gastronômico de Canavieiras. Uma esculhambação devidamente organizada. Acredito que lá em cima já deve ter se reunido com os amigos Tyrone Perrucho, Neném de Argemiro, e muitos outros que partiram antes dele. Acredito que já planejam coisas do tipo lá em cima, se é que permitido.

Mas o zeloso funcionário da Caixa Econômica Federal amava sua Canavieiras, tanto assim que trocou de emprego, ingressando no Banco do Brasil para voltar à sua terra. Bancário conceituado, também foi secretário municipal em Camacan e Canavieiras, esta por diversas vezes. Em todo esse tempo sempre foi visto como uma reserva moral (como todos deveriam ser) no serviço público.

Tolé também era dono de uma “pena” afiada. Foi um dos fundadores do jornal Tabu, ao lado de Tyrone Perrucho, Durval França Filho, Almir Nonato, Raymundo José dos Santos e Lindinberg Hermes. Sabia escrever um texto “apimentado”, porém devidamente terno e educado. Era pródigo em panfletos eleitorais, elaborados com o fino humor e sarcasmo.

Mas, com o tempo, Tolé mudou, para o desespero dos seus colegas. De uma hora pra outra passou a autointitular-se abstêmio. Mas não seria um abstêmio qualquer, moderado, e declarou guerra às bebidas alcoólicas. Essa sua decisão causou um terremoto entre os amigos que passaram a considerá-lo um vira-casaca, traidor da causa boêmia. Não arredou o pé e manteve sua decisão pra sempre.

Mas neste sábado (26) conversávamos – eu, Raimundo Tedesco e Alberto Fiscal – sobre as peripécias de Tolé, a exemplo da viagem que fez com Tyrone a Salvador sob o pretexto de comprar um carro. Arrebanharam mais dois colegas e partiram para a capital. Carro pronto, partiram numa viagem que levou quase 15 dias no percurso de volta até Canavieiras.

De outra feita, Tolé se organizou com os colegas do Banco do Brasil para participarem da inauguração do Estádio Luiz Viana Filho (hoje Fernando Gomes), em Itabuna. Na caravana, o dito cujo, Raimundo Tedesco, Fred e Jovaldo. Ao raiar do dia embarcaram e fizeram a primeira parada em Panelinha, para o café da manhã, melhor seria cerveja da manhã.

E eles tocam o “barco” até Camacan, a segunda para, sendo recebidos por pelo colega do BB, Jolison Rosário. No início da tarde saem para Itabuna, que seria o destino. Mas o colega Jovaldo, pernambucano do agreste, queria conhecer Ilhéus, resolveram partir para dar uma voltinha na vizinha cidade e retornarem para o jogo.

Deram uma volta pela cidade até descobrirem um bar do jeito deles e por lá ficaram até o cair da noite. Resultado, o turismo esportivo ficou pra nova oportunidade e Tolé somente foi conhecer o estádio de Itabuna 12 anos depois. Quem lê essas linhas não tem a ideia do Tolé pai de família extremado, amigos à mancheia e que deixa saudades.

Pelo que eu soube – confidencialmente –, assim que chegou bateu à porta do Céu, prontamente aberta por São Pedro, que fez mesuras ao convidá-lo:

– Entra, Tolé, seus amigos já estão lhe esperando!

*Radialista, jornalista e advogado.

sábado, 26 de outubro de 2024

Antonio Cicero e a morte dos Poetas, de Gil Vicente Tavares. Publicado no Correio24horas.com.br

 

GIL VICENTE TAVARES

Antonio Cicero e a morte dos Poetas

O Poeta está além do intelectual porque ele não só contempla, mas produz de sua contemplação



  • Gil Vicente Tavares - autor do texto.

Publicado em 25 de outubro de 2024 às 05:00

 

Quando um de meus mestres veio morar na Bahia, vindo da Alemanha, ele logo foi convidado para uma festa. Assim que chegou, alguém lhe disse que iria apresentá-lo a um amigo, que era poeta.

O alemão tremeu nas bases. Logo na primeira festa, recém-chegado, e ele ia conhecer um Poeta!

 Na sua tradição, em seu país, com suas referências, um Poeta era aquela pessoa extremamente culta, de obra monumental, que depois de anos dedicados aos mais variados estudos conseguiu criar a obra de arte mais concisa, densa, perfeita que é a poesia, a partir de um acúmulo de conhecimentos e experiências intelectuais.

Tal não foi sua surpresa quando, na sequência, a mesma pessoa seguiu lhe apresentando a mais uma, mais um, e, ao fim, a maioria dos presentes era poeta.

Ele, de tempos em tempos, repetia essa história pra mim, num tom bem-humorado sobre os folclores da Bahia, e me explicava que alguém escrever versos, publicar poesias, de sua perspectiva, não significava que, necessariamente e consequentemente, a pessoa podia se dar a alcunha de Poeta, assim: “o”, “a” Poeta.

Foi relativamente fácil para mim compreender a perspectiva de meu mestre alemão, pois cresci rodeado de alguns (pouquíssimos e encantadores) poetas, inclusive de meu próprio pai. Naturalmente, eu acabava por entender O POETA pelas referências que eu tinha.

O poeta, ou a poeta (poetisa), para mim, sempre era aquela pessoa que de maneira extremamente culta e com total domínio da história das artes, da literatura, da filosofia, conversava comigo de um lugar destacado, como referência, mestre, com visão arguta. Era uma perspectiva estética e ética que sempre me enlevava a outros patamares de pensamento e beleza. Eram pessoas que me pareciam essenciais para regular, desvelar e relativizar a beleza e o pensamento do mundo.

O Poeta está além do intelectual, a partir deste pensamento, porque ele não só contempla, aprecia, pensa e critica a beleza, mas produz de sua contemplação, apreciação, pensamento e crítica a própria beleza em si.

Faço a distinção ainda em diálogo com meu professor alemão, pensando aqui em Antonio Cicero e na morte dos Poetas.

Tenho sentido cada vez mais resistência à erudição e ao rebuscamento estético.

As pessoas não querem ler e têm raiva de quem o faz, pois quem se aprofunda, em vez de ser alguém que pode abrir caminhos de luz, é alguém isolado pelos que dominam a superfície. O aprofundamento se torna um afundamento, isolamento, reclusão imposta pelo exército da mediocridade cômoda e unida. E o rebuscamento estético se torna, em decorrência disso, um pecado.

Ildásio Tavares, meu pai, começa um sonetino dele dizendo: “eu sou diferente, / e tu, és também? / sorria contente / que o resto é ninguém”. Essa ideia da diferença, da busca pelo incomum, pelo mais complexo, que outrora era admirado, está cada vez mais sendo alijada. Seja no pensamento ou na criação artística.

Bacana é quem elogia e aplaude o mesmo que eu. A referência de crítica e pensamento é quem exalta o que eu acho bom e eu concordo. A busca por outros caminhos, por trilhas mais difusas, difíceis, tortuosas e distintas, tem se extinguido e sido rejeitada.

Antonio Cicero, como é comum aos Poetas, escreveu sobre filosofia. Aliás, pondo na balança, penso ter ouvido iguais ou mais numerosos elogios à sua obra filosófica que à sua poesia. Até porque, considerar alguém Poeta, nestes moldes, já é elevar sua obra a um lugar de qualidade, pois “um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura”, como diria o próprio Cicero ao definir a poesia. Separando também o texto escrito que perdura, que pertence à ordem do monumento, e não do documento, que bem faz o poeta num trocadilho, Antonio Cicero considera que “dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado.”

Para se ter um altíssimo grau de escrita, é preciso um altíssimo grau de erudição.

E estamos num mundo que cada vez mais, mesmo em ambientes acadêmicos, a erudição tem sido considerada um monstro que precisa ser enjaulado e guardado a sete chaves, para que ninguém corra o risco de confrontá-lo.

A decadência do pensamento vira uma bola de neve onde quem cada vez prefere saber menos vai contaminando seu próximo, a geração seguinte e, assim, a celebração da mediocridade impede algo que gera uma preocupação a quem se interessa pela diferença: será que novas gerações formarão novos Poetas?

Sempre achei um porre aquela conversa de gente mais velha falando que “no meu tempo era melhor”, e que “antigamente” etc. etc. Mas olho ao redor e vejo que cada Poeta que morre é um buraco negro que se cria entre nós.

A atual formação, discussão e tendência apontam para que seja inviável o surgimento de novos Poetas. A celebração do medíocre, quando não do primário, como referências de pensamento, crítica e reflexão, é a dose diária de cicuta que preventivamente se incute no pretenso intelecto contemporâneo.

Em seu belo conto O Espelho e a Máscara, apresentado a mim por Saja, que sabia muito bem reverenciar os Poetas, Jorge Luis Borges fala de um rei que encomenda ao seu poeta um louvor pelos seus feitos de guerra. O poeta traz uma poesia que o rei julga perfeita e acima de tudo que foi criado. E dá um espelho de prata ao poeta, pedindo que ele escreva outro, visto que esse primeiro, por mais perfeito e belo que fosse, não havia afetado ninguém que o ouviu.

O poeta agradece e diz compreender, e volta depois de um ano. Traz um poema que não relata a guerra, mas é a própria guerra. Mais difuso, mais errático, e mais tocante, selvagem que o primeiro. Elogiado pelo feito ainda maior, recebe como recompensa do rei uma máscara de ouro, e o pedido para encerrar a trindade com “uma obra mais alta”. O poeta agradece e diz compreender, e volta depois de um ano.

Em seu retorno, o poeta “era quase outro. Algo, que não o tempo, havia enrugado e transformado seus traços. Os olhos pareciam olhar muito longe ou estar cegos”. Ele quase não tem coragem de recitar o poema, mas o faz, a sós, ao rei. Apenas uma frase.

Ela veio pela manhã, quase como uma profanação, diz o Poeta, e o rei percebe-a e busca uma expiação, pois conheceram a Beleza, assim, com letra maiúscula, “que é um dom proibido aos homens”. O rei dá uma adaga ao Poeta, que se mata, e sai pelo seu país como um mendigo, sem nunca mais ter repetido o poema.

Meu resumo não traduz sequer 1% da beleza do conto, que é quase uma poesia, como os são os contos curtos de Borges. Como diria Antonio Cicero, “como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado.” Mas não o quis dizer noutras palavras. Quis apenas trazer, dentre as riquezas de leituras que se podem ter do conto, uma específica. No percurso da escrita, o Poeta começa com a perfeição da forma, das imagens, do belo, dos versos e rimas. Mas não basta ao rei, que queria que o poema fosse um “fogo que arde sem se ver”, uma “ferida que dói e não se sente”, como magistralmente Camões definiu o amor; que é, ao fim e ao cabo, o esplendor da Beleza.

O poeta, depois de um ano se supera, vai mais a fundo, mergulha na alma da poesia, e traz o fogo e a ferida, refletida no espelho de prata.

O poeta precisa de mais um ano, ele e sua máscara de ouro, para achar a essência, o absoluto, a forma pura e o poema absoluto. O dom da Beleza.

O percurso inverso, Borges sabe, jamais aconteceria. Era preciso o caminho através da forma, da técnica, para em seguida se lapidar a arte e fazer o verbo se tornar carne viva e pulsante. É um caminho tortuoso, difícil, provavelmente impossível (o poema utópico e absoluto em Borges chega com a morte e a errância). Mas que o Poeta passa a vida a tentar.

Quando Antonio Cicero resolve tirar sua própria vida, numa eutanásia assistida, por não se sentir capaz de ser o Poeta que era, ele não tira apenas sua vida, se vai com ele mais um espécime raro, em extinção.

Roman Jakobson escreveu um livrinho chamado A Geração que Esbanjou seus Poetas, comentando a estúpida perseguição soviética às grandes personalidades de seu país. Mais do que esbanjar, às vezes me parece que seguidas gerações vêm rejeitando e sepultando de vez a possibilidade de existência de uma figura que, por seu caráter de exceção, parece-me cada vez mais necessária a um mundo do ligeiro, superficial, primário e vazio. Se não como espelho ou máscara, ao menos como um contrapeso. Se não transformador, provocador e desestabilizador, como seria necessário, ao menos como referência de um outro mundo possível, imaginado e fantasiado; onde “o belo é o esplendor da ordem” (como diria Aristóteles).

Disso, vivem as utopias.

Disso, vivem e morrem os poetas.

Publicado no Correio24horas.com.br

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O poeta Hélio Nunes

 O poeta Hélio Nunes

O jornalista Manuel Leal, o poeta Helio Nunes e escritor Jorge Amado


A poesia de Helio Nunes está a merecer uma reedição, que se justifica plenamente, não só por sua alta qualidade, mas também pela necessidade de resgata-la para o leitor de hoje uma poesia feita por um dos mais talentosos poetas da sua geração. Pássaro do Amanhã, único livro publicado, até hoje nos impressiona e caracteriza-se por seu timbre inconfundivelmente lírico, ao qual acrescenta também uma nota de sátira.
Nascido em Aracaju, a 17 de abril de 1931, Helio Nunes da Silva, filho de José Nunes da Silva (fiscal de rendas) e Júlia Canna Brasil e Silva (professora). Hélio estudou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense e desde cedo se dedicou ao jornalismo, tendo colaborado em alguns jornais de Aracaju e trabalhado em vários do interior da Bahia, Voz de Itabuna, Voz Operária, Diário da Tarde (Ilhéus), O Momento, O Paladino, onde passou os últimos anos de sua vida e exercia a função de Titular do Cartório dos Feitos Cíveis da Comarca de Itororó.
Em 1952, após longa trajetória de participação ativa em movimentos políticos e estudantis, Hélio marca sua posição de esquerda, tendo no seu grupo de estudante do curso secundarista alguns nomes como Núbia Marques, José Rosa de Oliveira Neto, Fragmon Carlos Borges, Tertuliano Azevedo. Fugindo da repressão policial foi para a Bahia, passando por Cachoeira e São Felix, fixou-se em Itabuna, centro da região cacaueira.
Após concluir o curso de contabilista, passou a lecionar na Escola Técnica de Contabilidade, destacando-se na liderança de movimentos culturais. Em 1962, após criar a Itagraf, que se notabilizou como ponto de intelectuais, editando livros de escritores da região, fundou o Jornal de Notícias, que circulou naquela cidade até março de 1964.
Membro de partido comunista, dedicou-se à causa revolucionária, que abraçou desde jovem. Após o Golpe de 64, foi perseguido pelos militares, sendo obrigado a vender a gráfica juntamente com o jornal e transferiu-se para o município de Itororó. Forçado a esconder-se para não ser preso - como aconteceu com o seu sogro, Clodoaldo Cardoso, que amargou cerca de cem dias de cadeia em Ilhéus - Hélio Nunes entregou-se à depressão. Segundo depoimento de sua companheira, Hélio morreu amargurado, solitário, pois havia renunciado a viver.
Em princípios de 1971, com a posse do novo Governo Estadual da Bahia, fora nomeado um outro titular para o Cartório de Itajuipe, o que o obrigou a retornar para a comarca de Itororó, de onde viera transferido. A nova remoção obrigou o poeta a deixar sua família em Itajuipe, local de nascimento de sua esposa, professora Valquiria Cardoso.
O clima repressivo e o afastamento dos familiares, o fez entrar em profunda depressão vindo a ser fulminado em Itororó (BA) por um infarto do miocárdio em 21 de janeiro de 1973, aos 42 anos, deixando a mulher Valquiria, cinco filhos e três irmãos, dentre eles o também jornalista e escritor sergipano, Célio Nunes. Seu sepultamento ocorreu na cidade de Itajuipe, onde viveu por muitos anos.
Pássaro do Amanhã (poemas), capa do artista plástico Santa Rosa, seu único livro autoral, foi publicado em 1962. Hélio Nunes organizou e participou da coletânea Manhã Cinqüentenária, 1961, e da antologia organizada por Telmo Padilha, A Moderna Poesia da Zona do Cacau, 1977, além de publicar poemas e artigos em diversos periódicos. Promoveu vários encontros de lançamentos em Ilhéus e Itabuna de escritores do sul do país, entre os quais Eneida, Zora Seljan, Jorge Amado, Osório Borba, Sosígenes Costa.
Apesar da militância política, Helio Nunes era um homem frágil, extremamente emotivo, um homem de coração aberto, exposto. Um poeta lírico de versos brancos, ingênuo, mais um sonhador do que ativista. A coletânea de poemas, Pássaro do Amanhã, escrita a maneira da lírica socialista das décadas de 40 e 50 em todo o mundo, tinha a mesma forma poética aos dos poetas e companheiro de partido, José Sampaio, Enoch Santiago Filho e Jacinta Passos, José Oliveira Falcon, Thiago de Mello, Moacir Felix e outros.
2 poemas de Hélio Nunes
Poema a meu filho
Meu filho, chegarás na primavera:
Mil desculpas, não poderei oferecer-te
Aquele mundo alegre e humano que sonhei.
Meu filho, chegarás na primavera:
Quando adulto, não sê igual aos demais.
Tenhas o coração inquieto e a ternura de Valquira.
Meu filho, chegarás na primavera:
Ama e ama. Se te forçarem a odiar, odeia.
O Amor e o ódio têm suas grandezas.
Meu filho, chegarás na primavera:
Rosas e foguetes teleguiados também.
Vê nos povos, brancos e negros, teus irmãos.
Meu filho, chegarás na primavera:
Aos 18 anos lê estes versos, não são conselhos,
São desejos, devaneios de um pai sonhador...
Julho de 1959
******
Não partirei!
Desejo de partir. Para onde - não sei.
De beber um copo de vinho
num porto qualquer. Ou não beber nada.
Olhar silencioso as gaivotas, o mar,
E os marinheiros no cais.
Desejo de partir. Para onde - não sei.
Folhear um jornal dentro de um avião
rumo a uma cidade que não conheço.
Andar por avenidas largas, ruas e praças.
Ser um desconhecido entre milhões.
Desejo de partir. Para onde - não sei.
Desejo chapliniano de ir pelos caminhos
na hora do alvorecer. Comer uma flor,
beber água numa fonte com as mãos em concha
e enxugar a boca nos punhos da camisa.
Desejo de partir. Para onde - não sei.
Não. Não partirei. Não partirei!
Trago um sonho para realizar com ela.
Trago esperanças maduras como frutos
e alguns versos novos para o povo.
Dezembro de 1956
Na Foto - o jornalista itajuipense Manuel Leal Helio Nunes e Jorge Amado.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Antonio Cícero, escritor membro da ABL, morre na Suíça e deixa carta de despedida

Antonio Cícero, escritor membro da ABL, morre na Suíça e deixa carta de despedida

 

Ele sofria do mal de Alzheimer e se submeteu a um procedimento de morte assistida. O crítico literário e filósofo deixou uma carta explicando a decisão.

 

O escritor e compositor Antonio Cícero, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), morreu, na manhã desta quarta-feira (23), na Suíça. Ele sofria do mal de Alzheimer e se submeteu a um procedimento de morte assistida. O crítico literário e filósofo deixou uma carta explicando a decisão.

"Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade", afirma Antonio Cícero em um trecho.

(Confira a íntegra abaixo)

Ele era carioca e tinha 79 anos. A informação da morte foi confirmada pela ABL, onde o autor ocupava a cadeira 27 desde agosto de 2017.

O artista era irmão da cantora e compositora Marina Lima. Na voz dela, poemas seus ficaram famosos em todo o país. Entre as canções de sua autoria estão "Fullgás", "Para Começar" e "À Francesa".

Antônio Cícero também é coautor de "O Último Romântico", célebre na voz de Lulu Santos. Ele também teve parcerias com Waly Salomão, João Bosco, Orlando Morais, Adriana Calcanhotto.

Carta de Antonio Cícero:

"Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!"

terça-feira, 22 de outubro de 2024

DESCASO E MELANCOLIA: MEMÓRIA HISTÓRICA EM AGONIA

  

DESCASO E MELANCOLIA: MEMÓRIA HISTÓRICA EM AGONIA

Casa do fundador de Itabuna, no centro da cidade, é demolida na surdina || ReproduçãoSociedade civil itabunense organizada, representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário, todos calados, todos coniventes com a demolição da casa do fundador de Itabuna, um dos poucos prédios históricos da cidade, até então, sobreviventes. Mais uma vez a estratégia foi a de demolição na surdina. 

 


Janete Ruiz de Macêdo

A cidade de Itabuna, mais uma vez, foi obrigada a se confrontar com perdas irreparáveis. Perdas que levam à melancolia e ao enfraquecimento da memória, do sentimento de si, da sua identidade. Alguém se importa? Após os acontecimentos deste 19 de outubro de 2024, a demolição do sobrado do comendador José Firmino Alves, construído no final do século XIX, local onde foi pensado e gestado o processo emancipatório da cidade, centro social e político da vila da Tabocas e da cidade de Itabuna, a impressão que fica é de que não. Lá se processaram duros debates para escolha do primeiro Intendente, planos para prover a novel cidade dos aparatos urbanísticos e culturais necessários.

De onde veio mesmo essa cidade? Que imagem queremos construir? Estamos dispostos a apagar a imagem que a cidade adquiriu ao longo da sua trajetória, a imagem que lhe foi construída e que tem sido apresentada aos outros e a si própria?

A ideia de uma identidade cultural coletiva pautada em referentes materiais parece ser uma impossibilidade para os governantes municipais. Da mesma forma, é impossível encontrar quem se identifique com a ideia de patrimônio cultural. Nietzsche, em sua obra Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, afirma que os seres humanos precisam ter futuro, “estabelecer-se como garantia de si mesmo como futuro”, por isso desenvolveram uma vontade ativa de guardar impressões, apreender o acontecimento necessário, antecipar-se ao possível no tempo com segurança. Para tanto, foi preciso, pois, criar a responsabilidade. E esta seria algo vazio se a promessa de ontem caísse no esquecimento.



Dentro dessa perspectiva, onde está a nossa responsabilidade? Sociedade civil itabunense organizada, representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário, todos calados, todos coniventes com a demolição da casa do fundador de Itabuna, um dos poucos prédios históricos da cidade, até então, sobreviventes. Mais uma vez a estratégia foi a de demolição na surdina. Diante do seu susto e indignação, alguém escreveu ao memorialista Moacyr Garcia: “calma, foi a família que vendeu e não foi tombada a pedido dela própria”. Assim foi também com o Castelinho, casa de Aurea Alves Brandão Freire, localizada no canto norte da praça Olinto Leone, construída entre os anos de 1919 a 1924 e demolida em 1989. Deixo aqui registrado fragmentos do texto de Helena Borborema Era uma Vez um Castelo:

“Era uma vez… muito tempo atrás, bem no início da década de vinte, um rico senhor de terras e cacauais[…] desejou dar a uma de suas filhas noivas, como presente de casamento, uma bela mansão. Mas, como realizar o seu sonho numa terra onde tudo faltava, onde as coisas belas do espírito nem eram cogitadas… Queria uma bonita vivenda, algo que embelezasse a sua cidade… era aquela construção o testemunho de uma época endinheirada, monumento de amor à terra que tanto prodigalizou as benesses aos que a ela se dedicaram, nela fizeram fortuna e souberam retribuir a sua dadivosidade. Era ele o símbolo, a expressão da crença de um homem, Firmino Alves, no futuro de uma cidade. E num triste dia, silenciosamente, na calada da noite, impiedosamente, sem protestos, sem o menor respeito […] sem nenhuma causa justificável, o Castelinho foi jogado abaixo, como se com ele jogassem no lixo as relíquias do passado de um povo, de uma cidade”.

Renegamos esse passado? Que memória queremos construir? Para que conservar o que nada significava de amor para elas?

A memória de pedra e cal da cidade é praticamente inexiste: já não existe o teatrinho ABC, o prédio de Martinho Luiz Conceição, o casarão de Tertuliano Guedes de Pinho, a casa pertencente a Carlos Maron e o mesmo destino, em breve, terá a Cadeia Pública Municipal de Itabuna, o Museu Casa Verde e o pouco que resta do sobrado do médico Moisés Hage. Se quisermos ir um pouco adiante, por que não falar da deformação do prédio da Maçonaria Areópago Itabunense e o da Associação Comercial de Itabuna?

É certo que a memória coletiva itabunense não é um baú de tesouros depositados democraticamente, ao longo do tempo por razões afetivas, por todos os cidadãos da cidade. Sabemos que é uma memória exercitada por poucos, uma memória pouco ensinada, e a derrubada da casa de Firmino Alves, atesta, mais uma vez, a falta de efetividade da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania (FICC), e do Conselho Municipal de Cultura, órgãos que deveriam ser guardiões do nosso patrimônio histórico e cultural.

Parece só restar, então, a escriturística da saudade, buscando soluções na memória para oferecer uma sensação de identidade sólida apesar dos efeitos do tempo, pois por meio dela, como afirma Joel Candau em sua obra Memória e Identidade, “o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança. Juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar sua vida presente”. É isso que alguns memorialistas itabunenses têm realizado incessantemente, buscando soluções na memória para manter viva a história da cidade como um legado para o tempo presente.

A escriturística da saudade busca impedir que no fluxo temporal o esquecimento engula as memórias e a história de um povo e de um lugar, mas para uma memória forte e uma consciência viva sobre seu passado, é necessário a preservação de referentes materiais que lhe deem suporte. Para tanto, se faz necessário o exercício da Responsabilidade que tem faltado de forma profunda a grande parte dos agentes sociais que, direta ou indiretamente, labutam no campo da história e daqueles que ocupam cargos estratégicos no campo da política e da cultura.

Janete Ruiz de Macêdo é professora, doutora em História, fundadora do Centro de Documentação e Memória (Cedoc) da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) e curadora do Centro Cultural Teosópolis.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

A Cronica de Walmir Rosário - Direto de Canavieiras

 

SÓ O BOTAFOGO SALVA A SELEÇÃO BRASILEIRA

Seleção de 1958 com 4 titulares do Botafogo

Por Walmir Rosário*

“De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão”. Esse trecho do hino da Seleção Brasileira tricampeã de 1970, composto por Raul de Souza e Miguel Gustavo, dormiu eternamente em berço esplêndido por muitos anos. E sabe o motivo: a falta de jogadores do Botafogo na Seleção Brasileira. Isto fez com que ela se tornasse um azarão.

Mas agora – quem sabe? –, voltaremos a cantar: “Todos unidos na mesma emoção, tudo é um só coração. Todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a seleção”. Essa é uma pequena amostra da volta de jogadores da Estrela Solitária à seleção canarinho, decretada pelo técnico Dorival Júnior. No primeiro jogo, 2X1 aplicados contra a seleção chilena, sem dó nem piedade por Igor Jesus e Luiz Henrique.

Realmente, têm coisas que somente acontecem com o Botafogo, seja de forma positiva ou negativa. Eu até entendo esse boicote contra o Glorioso de General Severiano, liderados, principalmente, pelos rivais cansados de apanhar. Diria até desmoralizados em campo com goleadas acachapantes. Não são obrigados a reconhecer a grandeza do Botafogo, mas pelo menos respeitem.

A magia do Botafogo é real e isso está escrito dentro das quatro linhas do Maracanã, de Guadalajara, México, Copenhague, Santiago, e outros tantos estádios que os jogadores do Glorioso atuaram pela nossa seleção. Vocês se lembram de Garrincha, Nilton Santos, Didi, Gerson Canhotinha de Ouro, Zagallo, Amarildo e tantos outros? Era assim que nossa seleção funcionava.

Quem mais cedeu jogadores em copas do mundo que o Botafogo? Nenhum, apesar do boicote que durou anos. Mesmo assim, 47 jogadores foram cedidos à seleção brasileira, sem contar aos selecionados da Venezuela, Argentina, Uruguai e por aí a fora. Mas as estatísticas colecionam ainda 10 jogadores diferentes que marcaram gols nos últimos 50 anos.

E o Botafogo quebra mais um tabu aos demonstrar que nosso selecionado pode ganhar sem precisar convocar os jogadores por acordo com o prestígio de seus empresários. Bastou Igor de Jesus e Luiz Henrique cravarem dois gols e os brasileiros voltarem a acreditar. E aí, sim, voltaremos a cantar “Noventa milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração”, por mais 110 milhões de brasileiros.

Na Copa de 1958, na Suécia, três jogadores da Seleção Brasileira faziam a diferença dentro e fora de campo: Nilton Santos, Didi e Garrincha. Na partida final contra a Suécia, dona da casa, o Brasil sofre o primeiro gol. Uma ducha de água gelada! Mais eis que Didi vai até o gol defendido por Gilmar, pega a bola e calmamente se dirige ao meio do campo e diz: “Calma vamos ganhar”. E ganhamos por 5X2. Didi é eleito o craque da Copa. Apenas isso!

Mais uma vez vou refrescar a memória do torcedor brasileiro com os jogadores do Botafogo, desta vez na Copa de 1962, no Chile. A Espanha ganhava do Brasil por 1X0, quando Nilton Santos, a “Enciclopédia do Futebol”, derruba Enrique Collar na grande área. Seria um pênalti, se nosso lateral-esquerdo não desse um passinho pra frente e levantasse os braços. Falta fora da área.

Nesse mesmo jogo, um jogador da constelação de astros do Botafogo, Amarildo, que substituía Pelé, contundido no jogo contra a Tchecoslováquia, marcou os dois gols que viraram o placar. E eram cinco jogadores titulares naquela seleção, que contava com Nilton Santos, Didi, Garrincha, Amarildo e Zagallo. A seleção sequer precisava gastar tempo em treinamentos táticos.

Até esse jogo contra o Chile (2024), o Botafogo se colocava em primeiro lugar na cessão de jogadores para a Seleção Brasileira, com 47 jogadores. Agora somam 50, com Igor Jesus, Luiz Henrique e Alex Telles. Quando quase ninguém acreditava na seleção, eis que o Botafogo ressurge e ganha dos chilenos. Com isso, sai do sétimo lugar e sobe para a quarta posição.

Não apenas ganhou fôlego para a próxima, mas dá ânimo aos jogadores e torcida, que acreditam que nem tudo está perdido no “reino da CBF”. Mais que vencer, a mística botafoguense mexe na estatística mostrando que pela quarta vez o Brasil venceu o Chile, no mesmo estádio e com mais de um gol marcado por jogadores do Glorioso.

Para os que não gostam ou simplesmente ignoram a história, vamos para a Copa do Mundo de 1970, no México, quando trouxemos o “caneco” Jules Rimet em definitivo, para casa. Imaginem o criatório de cobras do Botafogo na Seleção: Jarzinho, Roberto Miranda e Paulo Cezar, o técnico Zagallo, além do zagueiro Leônidas e o ponta-direita Rogério (lesionados e cortados do elenco).

Não resta a menor dúvida de que um componente essencial para vencer uma copa do mundo é a convocação dos jogadores do Botafogo, que hoje disputa três certames diferentes: o Campeonato Brasileiro, a Taça Libertadores da América, e agora a Classificação do Brasil para a Copa do Mundo. Mas fiquem tranquilos, pois saberemos dar conta do recado, e bem direitinho.

E digo isso, pois minha estrela é mais que solitária, é altaneira como a constelação que sempre foi o Botafogo. E o botafoguense, mais que outro torcedor, sabe diferenciar a emoção dos números frios da estatística da paixão. Nada melhor do que ganhar bem, no campo. Perder é apenas uma consequência que faz parte do futebol.

Só quem é botafoguense sabe ver nesse esporte uma paixão. É só dar uma olhada nos craques que nos deram alegria na Seleção Brasileira, desde que existe Copa do Mundo. Não canso de contar os 47 que já fizeram história nas copas do mundo até hoje e os três que prometem recolocar nossa seleção no pedestal que merece.

E veio o Peru. Morreu de véspera! Bastou entrar no Estádio Mané Garrincha, tomou um 4X0, com o último prego no caixão batido pelo botafoguense Luiz Henrique. Realmente, tem coisas que somente acontece com o Botafogo! E assim voltaremos a cantar, em alto e bom som: “Todos juntos vamos pra frente, Brasil! Salve a seleção!”.

*Radialista, jornalista e advogado.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A Cronica de Walmir Rosário - Direto de Canavieiras

 

LOURIVAL FERREIRA, SEUS PESOS E MEDIDAS

Orlando Cardoso foi dirigido por Lourival Ferreira na Difusora

Por Walmir Rosário*

Lourival de Jesus Ferreira era um técnico em eletricidade e eletrônica que montou as três emissoras de rádio AM de Itabuna – Clube, Difusora e Jornal, nas décadas de 1950 e 60. Também foi redator, apresentador de programas e diretor de emissoras, um faz tudo conceituado e suas criações e produções eram respeitadas. Todas campeãs de audiência.

Apesar de pessoa de bom trato, educado, Lourival era muito exigente e cobrava qualidade dos colegas que dirigia. Na Rádio Difusora Sul da Bahia, do empresário e deputado estadual Paulo Nunes, tinha o aval dos filhos do parlamentar, sobretudo Paulo Nunes Filho e Hercílio Nunes, este o administrador da emissora.

Lourival Ferreira era o “homem de sete instrumentos” e suas recomendações deveriam ser cumpridas à risca, sob pena de um olhar mais duro, reclamação, suspensão e até demissão. Com o passar do tempo, Lourival estudou direito, advogou em Itabuna, prestou concurso para a magistratura, foi juiz em Una, Itabuna, Salvador e chegou ao cargo de desembargador.

Assim que foi trabalhar no setor esportivo na Rádio Difusora, o “olhar clínico” de Lourival Ferreira identificou outras qualidades no narrador Orlando Cardoso, como apresentador de programas e noticiarista. De início, passou a trabalhar em parceria com Romilton (Teles dos) Santos, já “cascudo” no microfone e que encarnava o personagem “Martelo”, no programa Martelo e Martelinho (Eurípedes).

Como Orlando Cardoso já tinha ganhado a confiança, numa de suas muitas viagens, Lourival Ferreira indica Orlando para substituí-lo na apresentação da Resenha Esportiva que ia ao ar das 18h45min às 19 horas. Na produção o sisudo Raimundo Galvão, e na apresentação Romilton Santos e Orlando. Antes da viagem, as recomendações de praxe: “Era um programa em que as brincadeiras não eram toleradas, daí a escolha”.

E a Resenha Esportiva continuou no padrão de antes, até que um dia, ao noticiar sobre o novo material esportivo do Itabuna amador (ainda o amarelo e preto), Orlando abre o microfone e diz: O Itabuna acabou de receber o seu novo material esportivo, vindo de Santa Catarina. E Romilton complementa: O material do Itabuna consta de maiôs, camisas e chuteiras.

Diante da falha de Romilton, que trocou a palavra meiões por maiôs, Orlando Cardoso não se contém, cai na gargalhada e não consegue se recompor. Aí Romilton empurra Orlando da cadeira e toma a frente, tentando consertar: Aliás, quer dizer, meiões, camisas e chuteiras. Em seguida pede um comercial e lembra o que Lourival Ferreira teria recomendado: “Nada de brincadeiras”. Recompostos, os dois disseram que imaginaram os pesados atletas do Itabuna com as genitálias dentro de um maiô.

De volta a Itabuna, Lourival Ferreira soube por ouvintes a falha humorística e pegou o rolo da fita do programa para ouvir a gravação. Para não deixar de graça, deu um esporro em cada um depois caíram na gargalhada. Tapinhas nas costas de Romilton e Orlando, o que seria a recomendação de continuarem, porém sempre observando os textos com atenção.

Outro grande locutor e apresentador da Rádio Difusora foi Germano da Silva. Crooner do Lord Ritmos (se não me engano o nome) e que culminou no Lordão anos depois, Germano foi locutor comercial e apresentador de programas e shows de auditório e praças. Dono de um vozeirão impecável, o locutor gostava sempre de falar palavras difíceis e com sotaque carioca.

Numa manhã, enquanto Germano faz a locução de um texto comercial, ressalta a palavra gratuito por “gratuíto”, em alto e bom som, caprichando na separação do ditongo “ui”, pronunciando “gra-tu-í-to”. E isso justamente quando Lourival Ferreira ia chegando à sala da técnica de som. Pela cara que fez, deu a impressão que tinham estourados os tímpanos do diretor.

Imediatamente, chamou Germano da Silva em sua sala e impôs como castigo ao apresentador Germano da Silva a compra imediata de um caderno de 100 folhas e que escrevesse a frase “a palavra correta é gratuita”, por três mil vezes. Germano tentava se explicar, mas não sabia como consertar. E Lourival Ferreira foi categórico: “Só me volte aqui quando tiver escrito tudo e aprendido a pronúncia correta”.

E assim foi feito. Como era uma sexta-feira, deixou a sede da emissora, passou numa papelaria, adquiriu o caderno recomendado, e passou o fim de semana escrevendo. Na segunda-feira se apresentou, mostrou a escrita e pronunciou a frase por diversas vez, por exigência do diretor. Foi reconduzido ao programa e continuou o showman no microfone.

Germano da Silva passou a atuar também na política, foi assessor de imprensa da Prefeitura de Itabuna por vários anos e apresentador de shows. Cursou Direito e passou a advogar em toda a região, atuando em várias áreas da advocacia. Germano Lopes da Silva é Patrono da Cadeira nº 11 da Academia de Letras Jurídicas do Sul da Bahia.

*Radialista, jornalista e advogado