Chocolate renasce no sul da Bahia com nova geração de produtores de cacau fino
Diante de desafios históricos como a praga vassoura-de-bruxa e os preços defasados, produtores resgatam a atividade com foco em qualidade, rastreabilidade e chocolate de origem e posicionam a região como referência em produtos finos.
Na terra de Jorge Amado e de seus personagens eternizados como
Gabriela, do romance Gabriela, Cravo e Canela,
uma nova geração de produtores e empreendedores tem investido na produção
de cacau artesanal, de olho em um consumidor atento à
forma como o chocolate é produzido e também
disposto a pagar mais por uma barra do produto.
A região do sul da Bahia já foi uma das maiores exportadoras de
cacau, mas perdeu espaço no mercado global depois da chegada da
vassoura-de-bruxa, praga que dizimou lavouras no final de 1980 e ainda hoje é
uma das principais vilãs.
Costa do Marfim e Gana lideram
atualmente a produção global, e o Brasil ocupa a sexta posição na produção
mundial do fruto.
Cerca de três décadas depois,
filhos e netos daquela geração de produtores buscam novos caminhos para se
manter na atividade, com foco na produção de cacau fino, na qual a qualidade
ganha relevância em detrimento da quantidade.
Se antes o destino do cacau baiano
passava quase exclusivamente pelas tradings e por multinacionais como Cargill, Barry Callebaut e Nestlé, que ainda mantêm presença industrial na região, o
foco tem mudado para a produção local de cacau fino, com rastreabilidade,
fermentação controlada e identidade própria, voltado à fabricação de
chocolates bean-to-bar (do grão à barra)
e também orgânicos.
O fator dos preços da amêndoa
também contribuiu para essa virada estratégica, já que a venda do cacau tem
como base as cotações negociadas na bolsa de Nova York.
Os produtores percebiam havia anos
que a qualidade do cacau da região era alta, mas os preços internacionais então
relativamente baixos da commodity não
acomodavam essas variações premium. A alta do
cacau nos últimos dois anos e meio e a maior demanda pelo produto de maior
qualidade mudaram o cenário.
Os futuros da commodity, que
rondavam os US$ 2.300 por tonelada no fim de 2022, subiram para até US$ 12.600
em dezembro de 2024. Neste ano, o cacau tem flutuado e perdeu força nos últimos
meses, mas era cotado a US$ 8.240 em 24 de julho, ainda bem acima do patamar
anterior.
Hoje, a região já é referência na
produção de chocolates finos, com diversos produtos premiados dentro e
fora do Brasil.
Na edição deste mês do Chocolat
Festival, que ocorreu no centro da cidade de Ilhéus, foi possível encontrar dos
mais diferentes tipos e usos para o cacau baiano: geleias, cremes, cervejas,
além, claro, de diversas variações de chocolate.
“O cacau aqui é mais do que produto:
é história, floresta em pé, transformação social”, disse Maurício Galvão,
secretário de Turismo de Ilhéus. Segundo ele, 70% da produção da região é feita
por agricultura familiar.
A meta, explica, é integrar o
setor com educação, cultura e turismo.
“O turista colhe cacau, aprende
sobre o processo e entende por que aquele chocolate tem um sabor diferente.”
Quarta
geração da família
Marcela Tavares Monteiro, da
Cacau do Céu, é uma das que apostaram na produção de cacau para chocolate fino
e colheu os frutos com premiações em competições brasileiras e no exterior.
Ela conta que no final de 2008
viajou para o Canadá para estudar sobre a fabricação de chocolate, e, três anos
depois, fundou a marca Cacau do Céu junto com a sua irmã, Manuela.
Da quarta geração de uma família
tradicional do cacau, Monteiro diz que começou a trabalhar na produção bean-to-bar (do grão à barra) na região de Ilhéus,
em 2009, antes mesmo de o termo se popularizar no Brasil.
“A crise agora dos preços não é
uma crise para quem é daqui. É um preço justo, porque passamos tempo demais
sendo mal remunerados”, disse Monteiro.
A crise mencionada por Monteiro
é sobre o aumento dos preços da amêndoa na bolsa de Nova York, que nos últimos
anos gerou pressão sobre a grande indústria de chocolate.
Hoje, a sua marca tem duas
unidades produtivas no país: uma em Ilhéus, com produção de 500 quilos ao mês,
e outra em Santa Rita do Sapucaí (MG), que produz 1,5 tonelada ao mês, mas
conta com capacidade para 6 toneladas mensais.
“Antes da vassoura-de-bruxa, o
cacau baiano era respeitado. Depois, perdemos qualidade e produtividade. Agora,
com o cacau fino, estamos recuperando isso.”
Tavares investiu R$ 5 milhões
para expandir sua fábrica em Minas Gerais para abastecer o Sudeste, hoje seu
principal mercado consumidor. Em São Paulo, é possível encontrar o seu produto
na Casa Santa Luzia.
O carro-chefe da marca são os
produtos liofilizados com frutas naturais, como morango e maracujá.
“O desafio não é fazer
chocolate. É vender chocolate”, disse.
A matéria-prima de Monteiro tem
origem em sua própria fazenda e na de um produtor parceiro, João Tavares, da
Fazenda Leolinda, cujas amêndoas dispostas em 340 hectares de terra foram
reconhecidas em prêmios internacionais.
Depois de décadas produzindo
para a indústria tradicional, ele conta que apostou na fermentação controlada,
rastreabilidade e genética diferenciada das amêndoas para se diferenciar na
produção de cacau.
Hoje, cerca de 70% da sua
produção é considerada cacau fino.
“Com a vassoura-de-bruxa, ou a
gente agregava valor ou quebrava. Foi uma questão de sobrevivência”, disse João
Tavares.
Tavares explica que ainda não
produz chocolates, mas está nos seus planos no futuro próximo.
Segundo ele, o principal
desafio é a sucessão dos negócios — algo que foi reiterado por cacauicultores.
“Meus filhos foram para outras
áreas, traumatizados pela crise que vivemos. E também há o desafio da
monilíase. E o clima, que empurrou a safra para setembro.”
Da árvore
à barra
A idealizadora da marca Modaka,
Patrícia Viana Lima, é a quarta geração de uma família envolvida com a
cacauicultura no sul da Bahia.
Ela comanda a produção de
chocolates orgânicos a partir das amêndoas cultivadas na própria fazenda da
família, no município de Barro Preto.
A marca, criada em 2012, é fruto de
um movimento que começou em 2008, quando seus pais passaram a buscar formas de
agregar valor à matéria-prima, que até então era vendida apenas como cacau in natura.
“Somos tree-to-bar mesmo. Tudo começa na lavoura, com
cacau da nossa própria origem. E tudo é orgânico, certificado desde os anos
2000”, disse Lima. A fábrica da marca funciona dentro da fazenda.
Com uma média de 1,5 tonelada
de amêndoas processadas por ano, e capacidade produtiva de 3 toneladas em anos
mais produtivos, a Modaka trabalha com diferentes linhas de chocolate, todas
orgânicas, além de produtos sazonais feitos com frutas como acerola, cacau e
cupuaçu.
O carro-chefe inicial foram os
amêndoas crocantes, mas aos poucos outras modalidades, como a barra e o nibs
também ganharam espaço no portfólio.
“Temos uma variedade de
tabletes que agrada diferentes perfis”, disse.
A gestão da Modaka hoje envolve
cerca de oito pessoas que trabalham sob o sistema de parceria rural,
popularmente conhecido na região como meieros.
Nessa modalidade, os meeiros
trabalham em um sistema de parceria agrícola, no qual o trabalhador cultiva e
colhe o cacau em uma terra que não é sua e, em troca, divide a produção com o
proprietário da terra.
Além das parcerias, Lima tem
dois funcionários contratados sob o regime CLT na fazenda e uma equipe enxuta
na fábrica. “Temos o apoio de instituições como Sebrae e Fieb, que ajudam com
projetos voltados à cadeia do cacau e do chocolate”, afirma.
Entre os principais desafios,
Patrícia cita a baixa produtividade por conta de doenças como vassoura-de-bruxa
e podridão parda, o clima instável, a mão de obra escassa e o dilema da
sucessão familiar.
“Ainda sou eu à frente do
negócio. Meu pai costuma dizer que a região não trabalhou a sucessão. Mas vejo
que agora há um movimento em torno do cacau e do chocolate que está atraindo
filhos, netos e bisnetos de volta para perto. A nova geração é mais digital,
menos campo. É preciso equilíbrio para garantir continuidade.”
Cabruca,
rastreabilidade e chocolate de origem
Na Fazenda Riachuelo, da Mendoá
Chocolates, a meta é ampliar a produção própria e manter o foco em qualidade.
Com 2 mil hectares, dos quais
1.800 são dedicados à produção de cacau no sistema agroflorestal cabruca, que
integra o cultivo à vegetação nativa da Mata Atlântica, a principal fazenda do
grupo localizada em Ilhéus produz chocolate fino com rastreabilidade de ponta a
ponta.
“Brincamos que fizemos uma
sociedade com a vassoura-de-bruxa. Ela fica com 70% e nos deixa 30%”, disse
Riane Brito de Costa, coordenadora de qualidade da Mendoá.
Desde 2023, toda a produção de
cacau orgânico da fazenda é destinada exclusivamente à fábrica própria.
O cacau convencional ou que
apresenta algum grau de defeito é colhido e comercializado como commodity para
as tradings, após ser classificado conforme o grau de qualidade.
A fábrica tem potencial para
processar até 3 toneladas de chocolate por mês, mas atualmente opera com uma
média de 1 tonelada, sendo que atualmente processa 179 kg por dia no período de
entressafra, abaixo do pico anterior de 300 kg/dia.
“A manteiga de cacau subiu
entre 20% e 25% este ano. Mesmo assim, seguimos com rastreabilidade total”,
afirmou Costa. A maior parte da produção da Mendoá vai para São Paulo, mas os
produtos também abastecem o mercado baiano e outras regiões.
A fazenda tem cerca de 100
funcionários na colheita e 26 na fábrica, todos contratados sob regime CLT,
explica a coordenadora de qualidade do grupo.
Além do cacau, a Mendoá cultiva
frutas como cupuaçu e cajá. A sibira do fruto, que prende as sementes à casca,
são vendidas para empresas que produzem ração de peixe, enquanto que a casca do
cacau é revertido em adubo.
No terreno da fazenda, há ainda
a Escola Lava-Pés, mantida dentro da propriedade para atender os filhos dos
trabalhadores. As aulas oferecidas são até o sexto ano.
Aproximadamente 20 famílias
vivem na Fazenda Riachuelo, que existe desde 1855 e hoje é administrada com
base em um projeto idealizado pelo pesquisador Raimundo Moroó, da Comissão
Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) e com investimentos dos irmãos
Geraldo e Leandro Almeida.
Para manter a qualidade do
produto final, a separação entre o cacau para chocolate e o que vai para o
mercado convencional começa na colheita: apenas os frutos no ponto ideal de
maturação são fermentados e secos para uso próprio.
“Temos padrões que precisam ser
seguidos, inclusive no ponto da colheita. O cacau que não utilizamos é
destinado ao mercado de commodity.”
Mesmo com as dificuldades
climáticas recentes, agravadas por fenômenos como El Niño e La Niña, que afetam
os ciclos de chuvas e de safra e entressafra desde 2022, a expectativa é de
retomada gradual da produção.
Segundo Costa, o cacau é uma
planta sensível, que reage a variações de temperatura e umidade.
“É um fruto mágico, que se
adapta às condições, mas sofre com o frio e a chuva excessiva”.
Um novo
olhar sobre a terra
Em Itacaré, a cerca de 75 quilômetros
de Ilhéus, a Fazenda Vila Rosa aposta em outro
modelo de negócio, que mescla a aposta no cacau com o turismo rural para manter
o local preservado.
O americano Alan Slesinger trocou a vida de paisagista em Nova
York por um projeto multifuncional que mistura turismo, história, arquitetura e
chocolate artesanal.
“Meu foco nunca foi produzir
toneladas de cacau, mas mostrar o processo. Chocolate é poesia. Ele fala de
amor, de amizade. O chocolate é só o meio”, disse.
Alan conta que vendeu seus
imóveis no East Village, em Nova York, em 2006, no auge do mercado e investiu
na fazenda na Bahia.
“Eu comprei aqui como quem
entra faminto num restaurante e pede duas travessas cheias. Era um sonho”,
lembra.
Hoje, a fazenda recebe milhares de
visitantes por ano e está próxima do breakeven, conta. Só
em janeiro, segundo ele, passaram mais de mil pessoas por ali.
O tour completo com todas as
etapas de produção do cacau e a história do casarão da fazenda custa R$ 100 por
pessoa.
O cacau cultivado ali vem de
árvores antigas, e pouco produtivas. “Minha floresta é fantasma. Árvores
velhas, alongadas. Não plantei para alta produtividade”, disse.
Além disso, produzir em larga
escala, segundo ele, seria inviável. “Só o salário de um funcionário básico é
R$ 30 mil por ano. Para isso, você precisa de muito cacau e minha fazenda é velha.”
Dois terços da receita da
Fazenda Vila Rosa vêm do turismo rural de experiência: visitas guiadas,
degustações, arquitetura e jardins.
O restante vem da venda de
chocolates finos, feitos com o cacau local e comercializados também em uma loja
própria no centro de Ilhéus.
O espaço virou referência
regional, especialmente em dias nublados, quando se torna uma das principais
opções fora das praias.
O projeto envolve entre 16 e 25
funcionários, conta.
“Eu vejo a fazenda como um
organismo vivo. Um jardim que sempre está crescendo, amadurecendo, envelhecendo
e renascendo”, disse. Aos 59 anos, ele se divide entre surf, criação artística
e a gestão do espaço.
“Não sou arquiteto, mas aqui eu
posso brincar. Tenho liberdade para criar. E isso, para mim, vale mais do que
qualquer planilha de lucro.”
Fonte: Bloomberg
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