WALDIR PIRES – A VIDA POLÍTICA E SUAS CONTROVÉRSIAS (PARTE
1)
Waldir Pires foi deputado, governador da Bahia, ministro e vereador || Foto Marcelo Casal Jr./ABr
Waldir sabia dos riscos da sua atitude e, ao se despedir do cardeal, com certa acidez e um leve sorriso nos lábios disse: O senhor vai responder lá em cima, e muito fortemente, pela injustiça que está cometendo.
José Cássio Varjão
Um dos nomes de maior relevância, da política
baiana e brasileira foi o social-democrata Francisco Waldir Pires de Souza.
Advogado, professor da Universidade Católica de Salvador, professor da
Universidade de Brasília, professor da Universidade de Dijon, na França,
consultor-Geral da República no governo João Goulart, ministro da Previdência
Social, no governo José Sarney, ministro da Controladoria-Geral da União e
Ministro da Defesa, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, deputado
estadual, deputado federal, governador e, por fim, vereador, de Salvador.
Como capítulo marcante do meu livro Eleições
Históricas – Do Voto à História, a ser lançado nas próximas semanas, a
eleição para o governo da Bahia, em 1986, foi um acontecimento memorável na
história política da Bahia. Os olhos do ex-deputado federal Domingos Leonelli
brilham quando lembra da campanha de 1986: “Uma campanha como aquela nunca se
viu. Dificilmente se verá outra igual. Uma rebelião cívica. Waldir era o
símbolo do anseio de liberdade acumulado ao longo dos anos”.
Para escrever sobre o processo eleitoral de 1986,
no estado da Bahia, me debrucei, inebriado, nas quase 800 páginas dos dois
volumes sobre a biografia de Waldir Pires, de autoria do jornalista, escritor e
professor Emiliano José, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela
UFBA. “A campanha de 1986 foi algo jamais visto na Bahia, pelo que suscitou de
sonhos, de encantamento, de magia. Chegasse a hora que chegasse, às duas, às
três, às cinco da manhã, ninguém arredava o pé, chovesse canivete, houvesse a
tempestade que houvesse, fizesse chuva, fizesse sol, frio ou calor, as praças
não se mexiam. Foi um caso de arrebatamento, um profundo caso de amor entre a
população e seu líder. Um líder das massas. Quase um Messias”, sintetizou
Emiliano José.
Principalmente pela controversa renúncia ao mandato
de governador, para concorrer com Ulisses Guimarães, na eleição presidencial de
1989, pelo PMDB, esses dois textos, que escreverei, tem como objetivo trazer à
tona algumas situações do jogo político que passaram ao largo pela população,
que, ainda nesses dias, tece comentários, às vezes sem quaisquer parâmetros,
como se “a decisão mais difícil da minha vida política”, frase dita por Waldir
Pires, inúmeras vezes, tivesse sido uma escolha sem fundamento. Como exposto no
título desse escrito, Waldir Pires viveu alguns confrontos ao longo da sua vida
política que merecem especial atenção.
Nascido em Cajueiro, hoje município de Acajutiba,
litoral norte da Bahia, em 1926, filho do casal Zeca Pires e dona Lucíola,
mudou-se em 1929, com seus pais e irmãos, para Amargosa, a chamada Rainha do
Café, no início do século XX. Fez o ginásio em Nazaré das Farinhas antes de
seguir no final de 1941, para a Cidade da Bahia, a gigantesca Salvador, com
seus 290 mil habitantes. Estudou no Colégio Estadual da Bahia, depois, Colégio
Central e, finalmente na Faculdade de Direito da Bahia.
Em 1949, foi o orador da turma de Direito, uma
honraria especial àquele aluno que obteve média superior a 7 em todas os exames
escritos. A data da formatura, 5 de novembro, marcava o centenário do jurista
Rui Barbosa, com a inauguração do fórum que leva seu nome, no Campo da Pólvora,
Salvador. Com pompa, circunstância e a presença do governador Octávio
Mangabeira, Waldir Pires foi o primeiro orador a ocupar a tribuna do fórum e o
primeiro a se pronunciar na nova sede do Tribunal de Justiça da Bahia.
Exímio tribuno, um ano antes de se formar, em 1948,
recebeu a visita do então prefeito de Amargosa, João Sales, convidando-o para
ser o orador oficial da recepção ao governador Octávio Mangabeira, na
inauguração da energia elétrica da cidade. “Discurse por Amargosa”, pediu João
Sales. Ainda não havia envolvimento político, não estava vinculado a nenhuma
corrente política. Quando chegou a Amargosa, soube que o governador não estaria
presente, seria representado pelo secretário de Segurança Pública, Oliveira
Brito. O líder do governo na Assembleia Legislativa, Antônio Balbino (PSD),
também estaria presente e a vida de Waldir Pires tomou um rumo completamente
inesperado para aquele momento da sua vida. Se João Mangabeira foi seu
inspirador, Antônio Balbino foi seu tutor.
Um ano após a formatura em Direito, em 1950, Waldir
Pires concorreu a deputado estadual pelo PSD (Partido Social Democrático). Era
a confirmação, para Balbino, da sua vocação política e nada melhor do que
jogá-lo aos leões, testá-lo na batalha da conquista de votos. Waldir obteve
2.664 votos. Outro concorrente, Josaphat Marinho ficou com 3.044 votos. Os dois
se encontrariam em outras oportunidades do cenário político, como aliados ou
como adversários. Antônio Balbino estava certo. O talento do rapaz para a
política era inegável.
A carreira política de Waldir Pires estava se
iniciando e os frutos da amizade com Antônio Balbino lhe renderam a indicação
para o cargo de secretário de Governo de Régis Pacheco, eleito governador em
1950, aos 24 anos de idade. Um fato trágico a ser lembrado é que o candidato a
governador pelo PSD, em 1950, era o deputado federal Lauro Farani Pedreira de
Freitas, que morreu em acidente aéreo em 11 de setembro de 1950, na cidade de
Bom Jesus da Lapa. O coordenador e homem forte da campanha de Lauro de Freitas
era Antônio Balbino, que em três dias definiu Régis Pacheco, deputado federal e
ex-prefeito de Vitória da Conquista, como o candidato do partido.
Em 1954, é eleito deputado estadual pelo PTB, com
7.162 votos, estava definitivamente inserido no mundo político. Nessa
legislatura, entra na vida de Waldir Pires o maior desafeto e adversário da sua
carreira política, Antônio Carlos Peixoto de Magalhães, que obteve 3.990 votos
na eleição suplementar de 1955, bem abaixo de Waldir e o décimo eleito pela
UDN, que elegeu onze deputados estaduais. Nesse período, não se rivalizaram e,
em algumas oportunidades, Antônio Carlos fez seguidos elogios à atuação de
Waldir Pires. Nessa legislatura Waldir Pires foi o líder do governo na
Assembleia Legislativa. Josaphat Marinho também era deputado estadual.
Em 1958 é eleito deputado federal, com mandato a se
encerrar em 1963. Com destacada participação na 41ª Legislatura da Câmara
Federal, Waldir alçava voos no cenário nacional. Foi integrante ativo da
Comissão de Constituição e Justiça, integrante da Frente Parlamentar
Nacionalista, vice-líder da maioria no governo de Juscelino Kubistchek. Em
1961, em Genebra, Suíça, compôs a comissão que representou o Brasil numa
conferência internacional, votando pela admissão da China à ONU.
Aos 36 anos, em 1962, se lançou à primeira campanha
para o governo do estado da Bahia. Outro desafio, mais um degrau a subir e por
pouco não obteve sucesso. Perdeu a eleição para Lomanto Júnior, ex-prefeito de
Jequié, por meros 5% dos votos válidos. Aqui, surgiu a primeira controvérsia da
carreira política de Waldir Pires, o improvável embate com dom Augusto Álvaro
da Silva, o famoso Cardeal da Silva, nome da avenida que liga os bairros do Rio
Vermelho e Federação, em Salvador.
Naquela disputa, Lomanto tinha o apoio dos partidos
de direita, dos principais meios de comunicação e da Igreja Católica, enquanto
Waldir tinha o apoio do PSD e do PCB. Antônio Guerra Lima, advogado e
procurador-Geral do Estado no Governo de Waldir Pires (1986), afirmava que “não
bastaria apenas constatar genericamente o apoio da Igreja Católica a Lomanto.
Era imperativo afirmar o desempenho fervoroso e a dedicação pessoal do cardeal
com a intenção de derrotar Waldir Pires, um anti-Cristo a quem era necessário
abater”.
Dom Augusto Álvaro da Silva era um “príncipe
católico” conservador, completamente absorvido pelo clima que o mundo vivia
naqueles tempos de Guerra Fria, e agiu como um militante político influenciando
o clero baiano, nas suas missas e sermões, a não votar no candidato dos
comunistas. Com ataques diários, sendo amplamente divulgados pela imprensa,
eram distribuídos panfletos espúrios, com o título de “Alerta Democratas”,
constando os nomes dos candidatos “supostamente comunistas”. Parênteses para
pensar: Alguma similaridade com a política praticada por alguns grupos
atualmente?
Dia 6 de setembro de 1962, 31 dias antes das
eleições, a manchete do jornal A Tarde revelava que a Igreja
Católica dividia os candidatos ao governo do estado em duas classes: os bons e
os maus. Na lata. Direto ao ponto, sem nenhuma sutileza. A matéria descrevia
que “o perigo comunista mereceu a atenção dos sacerdotes, sendo ponto pacífico
que a Igreja não transigirá com os candidatos vinculados ao credo de Moscou, ou
com ele comprometidos, pelo perigo que representam para a segurança do regime
democrático e para os princípios fundamentais defendidos pela Igreja Católica”.
Waldir Pires e os seus pais eram extremamente
católicos, o que levou Zeca Pires a divulgar uma carta ao povo da Bahia, contra
as atitudes do Cardeal da Silva. Após as eleições, seu pai divulgou outra
carta, demonstrando grande revolta com as arbitrariedades do líder católico.
Num dos trechos, Zeca Pires assim escreveu: “No último episódio eleitoral, da
sucessão baiana, assistimos, com espanto e revolta, ao estrangulamento ou
sacrifício da verdade e do esforço construtivo. Procuraram, sem fundamento,
suspeitas sobre a ideologia de um moço, Waldir Pires, de sólida formação moral
e cristã que, como pai católico, graças a Deus, eu a soube ministrar, com
esmero e cuidado, pelo fato desse moço nutrir ideias de renovação e de
progresso. É assim, de manifesta leviandade e covardia, o setor da igreja que,
depois de aprovar seu nome, o desapoiou, na última hora, em uma guinada
espetacular e esquisita. Descristianizaram-se, atrelando-se ao carro dos
interesses humanos e das conveniências da vida. Hoje, o pseudocomunista
representa bem o samaritano do evangelho, é mais cristão do que muitos
sacerdotes”. Zeca Pires era coletor federal e foi o responsável pelo ensino do
francês aos seus filhos.
Certo dia, numa manhã de domingo, dona Lucíola, sua
mãe, “católica de berço e terço”, foi se confessar com o padre de Amargosa.
Ajoelhou-se, confessou seus pecados (Waldir perguntava à mãe que raios de
pecados ela tinha para se confessar, pois ele não encontrava pecado nela) e
recebeu a sua penitência de ave-marias, pai-nossos e salve-rainhas. Quando
estava saindo do confessionário, o padre disse: a senhora sabe que esse ano tem
eleições? Ela respondeu afirmativamente. Continuou o padre, dizendo que ela não
poderia votar no nome de Waldir Pires. Dona Lucíola levantou-se bruscamente,
abriu a cortina do confessionário, e o pecado da ira caiu sobre ela: Fique
sabendo o senhor que Waldir Pires é meu filho. O senhor me respeite. Isso é uma
indignidade! Uma injustiça que estão fazendo com Waldir. Se fosse pecado,
desse ela não pediria perdão. O padre imóvel e com os olhos esbugalhados,
calou-se.
O embate em si, frente a frente, ocorreu quando o
cardeal chamou Waldir para uma conversa no Palácio Episcopal, durante o
processo eleitoral: Waldir, eu o chamei aqui porque soube que o senhor tem o
apoio dos comunistas. Isso é verdade? Sim. Respondeu Waldir. A conversa seguiu
com Waldir argumentando que não tinha motivos para recusar o apoio do PCB.
Então, o cardeal vociferou: Se o senhor não recusar esse apoio, vou
baixar uma instrução recomendando que os católicos não votem no senhor. Vou
condenar sua candidatura. Waldir, impressionado pela frieza do cardeal,
respondeu: Lamento, mas não recusarei. Tenho lutas comuns com eles, o
petróleo, a energia, a luta pela igualdade social. Não há por que recusar esse
apoio. Waldir sabia dos riscos da sua atitude e, ao se despedir do cardeal,
com certa acidez e um leve sorriso nos lábios disse: O senhor vai
responder lá em cima, e muito fortemente, pela injustiça que está cometendo.
No próximo texto falarei sobre o início da convivência
entre Waldir Pires e Antônio Carlos Magalhães, a rivalidade criada com o passar
dos anos, a interferência de ACM no governo Waldir em 1986 e, finalmente sobre
a renúncia em 1989.
José Cássio Varjão é
cientista político.
WALDIR PIRES – A VIDA POLÍTICA E SUAS CONTROVÉRSIAS (PARTE 2)
Os ex-governadores e ex-ministros Waldir Pires e Antônio Carlos Magalhães
O que Waldir ainda não sabia é que Sarney fazia parte do jogo. Antes da conversa com Waldir, Roberto Marinho e ACM já tinham se reunido com Sarney, exposto o plano e este não se opôs. A Globo tinha autonomia no governo para fazer o que quisesse.
Após as eleições de 1962, ainda se recuperando da derrota para Lomanto Júnior, Waldir voltou a Brasília para concluir seu mandato de deputado federal. Perder a eleição por meros 33.623 votos, sabendo que a Igreja Católica foi preponderante para sua derrota, era seu calvário, teria que aceitar, era fato consumado. Numa circunstância eleitoral, até então, inédita, mesmo com a derrota, os dois senadores eleitos para aquela legislatura, Antônio Balbino e Josaphat Marinho, eram da chapa de Waldir Pires.
Os primeiros anos da convivência entre Waldir Pires
e Antônio Carlos Magalhães, dois deputados estaduais de primeiro mandato, eram
cordiais, principalmente, porque ambos apoiavam o governador Antônio Balbino.
ACM sabia da ligação próxima entre Waldir e o governador. O Diário da
Assembleia, de 19 de junho de 1955, relata debate acalorado, ocorrido na
tribuna da Casa, entre os deputados Adelmário Pinheiro e Josaphat Marinho,
ambos da oposição, contra Waldir Pires, sobre a sua presença no governo de
Régis Pacheco.
Aspas para Waldir: “Deixei a secretaria em fins de
1953, por imperativos de fidelidade pessoal e política ao hoje governador
Antônio Balbino. E deixei as melhores relações pessoais com S. Excia., senhor
governador Régis Pacheco. Deixei a secretaria pobre, como hoje o sou. Não tenho
coisa nenhuma, absolutamente coisa nenhuma, e vivo exclusivamente dos meus
subsídios. Não tenho títulos, nem imóveis ou bens pessoais”. Num aparte, o
deputado Antônio Carlos Magalhães, emendou: “mas tem um grande patrimônio
moral”. Os dois conviviam civilizadamente.
Em outro momento, conforme discurso publicado
no Diário Oficial da ALBA, dia 21 de fevereiro de 1957, ACM fez
importante intervenção em defesa do veto do governador a um aumento dos
subsídios para os deputados. Foi um pronunciamento firme e contundente contra
um acréscimo de 12 mil cruzeiros nos vencimentos dos parlamentares: “um
escândalo contra a maioria dos assalariados baianos”, bradou ACM.
Enquanto a maioria dos deputados fazia apartes
defendendo a majoração dos seus vencimentos, Waldir interveio afirmando que “a
verba pretendida pelos seus pares, era inconveniente na essência, na
substância”. Antônio Carlos agradeceu de imediato a manifestação de Waldir:
“Eminente líder, agradeço o aparte de V. Excia., – e quando digo eminente
líder, digo-o conscientemente por que em qualquer posição que V. Excia. se
encontre, nesse plenário, V. Excia. é um líder da moralidade, um líder da boa
causa! Consequentemente, tenho somente que agradecer o aparte de V. Excia. que
vem em auxílio aos meus argumentos, e isso fulmina a todos quantos queiram
sofismar a respeito de um assunto tão importante”.
Foram várias as oportunidades que os apartes,
vindos de lado a lado, aconteceram com deferência mútua, sem os entraves da
formação política, sobretudo por estarem em posições diametralmente opostas.
Para aquele momento, exclusivamente o que os unia era a defesa do governo de
Antônio Balbino. Waldir, por sua formação no PSD e rigorosa coerência
democrática, não se encontrará na sua trajetória política quaisquer ligações
com o campo da direita. Já Antônio Carlos, oriundo da UDN, foi peça chave para
sustentação da ditadura militar no estado da Bahia, sendo nomeado pelos
militares prefeito biônico em 1967 e, governador em duas oportunidades, em 1970
e 1978, pelos militares.
Em 1963, Waldir Pires é nomeado por João Goulart,
presidente da República, e João Mangabeira, ministro da Justiça, para o cargo
de consultor-geral da República, que hoje equivale a Advogado-Geral da União.
Nessa época, ACM era deputado federal. Com o golpe militar de 1964 e a
deposição do presidente João Goulart, Waldir Pires deixa o Palácio do Planalto,
direto para o exílio no Uruguai. Waldir e Darcy Ribeiro foram os últimos a
deixar o Palácio do Planalto, no momento em que Auro de Moura Andrade declarou
vago o cargo de presidente da República, convocando o presidente da Câmara dos
Deputados, Ranieri Mazzili, para assumir o cargo.
A reação de revolta de Tancredo Neves entrou para a
história da política brasileira, com a célebre frase “Canalha! Canalha!
Canalha”. Após quase dois anos no Uruguai, sem possibilidades de se manter
financeiramente, Waldir desembarca no aeroporto de Orly, era o dia 18 de
dezembro de 1965. A escolha por Paris se dava pelo conhecimento da língua e
pela presença dos amigos Max da Costa, Raul Riff, Celso Furtado e Josué de
Castro.
Lecionou, com destaque, na Universidade de Dijon,
na área de Direito Constitucional Comparado. Sua aula inaugural sobre “Grandes
Problemas Contemporâneos”, que revelava o clima político, econômico e social
vivido pela América Latina, com a implantação de ditaduras, contou com a
presença de quase 200 alunos e diversos professores, todos curiosos em conhecer
aquele professor estrangeiro. Waldir tinha provocado grande entusiasmo nos presentes,
pelo seu conhecimento de Direito Constitucional. Ao final, com o auditório em
suas mãos e todos impressionados com sua oratória, ele se sentiu como “o
conquistador do mundo”. Por um período, o sustento da sua família estava
garantido.
“Paris, nunca mais te esquecerei, mas a
minha luta é no meu país”.
Apesar de estabelecido na França, no final de 1969,
Waldir decidiu, junto com Yolanda, que após concluir seus trabalhos em Dijon,
voltariam ao Brasil. Não queria que os filhos fossem criados longe da sua pátria.
“Paris, nunca mais te esquecerei, mas a minha luta é no meu país”. No início de
1970, decidiram voltar, mas para o Rio de Janeiro. Era impossível viver numa
Bahia sob a dominação de Antônio Carlos Magalhães, com a tutela do AI-5. Após
12 dias de viagem, Waldir viu uma lancha da Polícia Federal se aproximando no
navio, que parou a uns 500m do porto. Um sujeito de terno e gravata o
interpelou, para que o acompanhasse. Chegaram à PF antes das 10h da manhã e o
interrogatório durou todo o dia. Por que o senhor está voltando para o Brasil?
O que o senhor pretende fazer aqui? O senhor volta para a subversão? Qual a
organização subversiva o senhor pertence? Vai viver com qual renda? E a luta
armada? Mesmo após todas as explicações, de que voltava para o Brasil para
criar os filhos no país deles, a PF o liberou, dizendo que sabiam onde ele iria
morar e que não poderia sair do Rio de Janeiro sem permissão policial.
Com a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, Waldir
mais uma vez arruma as malas. Era chegada a hora de voltar para a sua amada
Bahia, enfrentar quem quer que seja, reestruturar o PMDB e cumprir o que o povo
baiano delegasse. Sua chegada a Salvador, em 12 de janeiro de 1979, foi
apoteótica, com mais de 200 pessoas o aguardando no Aeroporto Dois de Julho.
Eram dirigentes partidários, deputados, amigos e parentes.
Aquele não foi um acontecimento qualquer. Antônio
Carlos não podia ignorar esse evento, tinha que demonstrar receptividade.
Então, pediu a Clériston Andrade, que era o presidente do Baneb e ex-colega de
Waldir na Faculdade de Direito, que, por sua vez, procurou Gerbaldo Avena,
cunhado de Waldir, para sondar sobre o encontro entre os dois. A proposta era
Waldir ir ao encontro de ACM. A resposta foi positiva, porém, com ACM indo ao
encontro de Waldir. “Pode mandar dizer a Antônio Carlos que o recebo na minha
casa. Ele sabe que sou um sujeito educado”, disse Waldir.
O encontro se deu na casa de Gerbaldo, irmão de
Yolanda. Foi breve, ameno, com gentilezas e amabilidades entre os dois casais.
ACM estava acompanhado de D. Arlete e, ao se despedirem, Waldir foi incisivo,
dizendo que agradecia a visita, mas não poderia fazer o mesmo, pois ACM era um
representante daqueles que oprimiam o Brasil e a Bahia, que exercia a ditadura
no Estado, de modo que não poderia retribuir a visita. Com essa atitude, Waldir
marca terreno na política do estado da Bahia, cortando os laços com quem
governava com um chicote numa mão e uma mala de dinheiro na outra. Tinha
retornado para resgatar o PMDB, que ainda era adesista, e dessa missão ele não
abriria mão.
Em 1985, entre as atividades do ministério e a
campanha para o governo do estado, a saúde de Waldir sentiu o esforço. No dia
27 de julho, após o encerramento da convenção do PMDB, um comício seria
realizado na Praça da Sé, centro de Salvador. Com a aglomeração de pessoas nas
ruas, o carro não pôde chegar ao local do evento, ficando estacionado da Rua da
Ajuda. Waldir seguiu a pé com outros correligionários, quando se sentiu mal na
Rua do Tira Chapéu, ao lado da Câmara de Vereadores. Tinha asma, que foi sendo
agravada pelas andanças pelo interior do estado. Os adversários, cientes da sua
enfermidade, faziam poeira aonde ele chegava para os comícios. Após esse
incidente, Waldir foi para o Rio de Janeiro para a realização de exames mais
apurados, tinha vivido na cidade por 9 anos. Preferiu fazer os exames no
Hospital dos Servidores do Estado, se recusando a usar instituições privadas.
Nessa internação, só foi permitida a presença de familiares ou de médicos. ACM,
com seu diploma de médico, esteve no hospital para visitá-lo, talvez como um
sinal de aproximação. Porém, foi enfaticamente barrado pela filha Ana Cristina,
que não admitiu a presença dele.
Em 1986, durante um ato em alusão aos 100 dias do
seu governo, Waldir e Yolanda Pires recebem a notícia do suicídio de Ana Lúcia
Magalhães, de 28 anos, filha de Antônio Carlos. Mesmo sendo membro da família
do seu principal adversário, o ato foi suspenso em respeito à dor da família
Peixoto de Magalhães. Waldir e Yolanda passaram pela mesma tragédia, na morte
de Waldemir Pires, filho do casal.
Enquanto Waldir estava no exílio, ACM já tinha sido
nomeado prefeito de Salvador, governador do estado e seria empossado novamente
como governador, em 15 de março daquele ano, 1979 – na mesma época que
solicitou aquela visita, via Clériston Andrade. Com o término do seu primeiro
mandato como governador, em 15 de março de 1975, Roberto Santos foi indicado
para o cargo, escolha que contrariava ACM, que desejava a indicação de
Clériston Andrade. Mário Kertész, ex-prefeito de Salvador, num documentário
realizado pela Rádio Metrópole, de sua propriedade, disse que “após deixar o
Palácio de Ondina, Antônio Carlos passava o dia de pijama, caminhando de um
lado para o outro na varanda da sua casa, na Graça. Andava meio depressivo”.
Concluiu. ACM entrava no ostracismo.
Em novembro de 1975, o ministro das Minas e Energia
do governo de Ernesto Geisel, Shigeaki Ueki, resolveu demitir o presidente da
Eletrobrás, Mário Bhering. Ueki e Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa
Civil, convenceram o Alemão, como era chamado Geisel, a nomear ACM para o
cargo. Ligaram para ACM e adiantaram que ele seria nomeado para a Eletrobrás:
“o presidente vai lhe chamar”. Antônio Carlos, que não sabia bulhufas sobre a
função que deveria assumir, voou para o Rio de Janeiro, se trancou num quarto,
por um fim de semana, para aprender o que fosse possível, com o intuito de
impressionar o presidente. Fingindo não saber de nada, Geisel lhe fez o
convite, e ACM verteu conhecimento sobre o desafio que iria assumir. ACM foi
salvo pelo gongo, por Ueki e por Golbery. Esse momento da vida de ACM, foi
preponderante para seu futuro político, pois, ao ser alçado a um cargo no
governo federal, com dimensão nacional, ele passa a ter maior relevância dentro
do grupo, que já foi comandado por Juracy Magalhães.
______________
Com a interferência do amigo Roberto
Marinho, dono da Rede Globo, ACM foi indicado para o Ministério das
Comunicações. A amizade dos dois foi construída no período em que esteve na Eletrobrás.
Entusiasta da candidatura de Mário Andreazza para
suceder a João Figueiredo, ACM fez forte oposição à Paulo Maluf na convenção
nacional do PDS, em 1984. Maluf venceu Andreazza por 493 a 350 votos. Antônio
Carlos mudou de lado e compôs a Aliança Democrática que elegeu, em 15 de
janeiro de 1985, Tancredo Neves. Com a interferência do amigo Roberto Marinho,
dono da Rede Globo, ACM foi indicado para o Ministério das Comunicações. A
amizade dos dois foi construída no período em que esteve na Eletrobrás. A
influência de Marinho para a formação do governo era tão grande que Tancredo
dizia: “eu brigo com o ministro de Exército, mas não com Roberto Marinho”.
Quando o nome de ACM foi ventilado para compor o ministério, Tancredo disse a
ACM, com o intuito de agradar ao dono da Globo: “o senhor se incomoda de
Roberto Marinho lhe fizer o convite para ser ministro”? ACM respondeu: “não,
não me incomodo, ele é meu amigo”. O detalhe dessa negociação de cargo é que
Roberto Marinho não aceitou que ele fizesse a indicação, afirmando que “se o
convite fosse dele, estaria enfraquecendo Antônio Carlos, que deveria ser visto
como um ministro do presidente, e não da Globo”. Antônio Carlos Magalhães foi o
único ministro a ficar na pasta por todo o governo Sarney.
O ápice da disputa política entre Waldir e ACM
aconteceu quando a transmissão da Rede Globo, na Bahia, que era feita pela TV
Aratu, desde 1969, tinha na família de Luiz Vianna uma das suas proprietárias.
Já a TV Bahia, fundada em 10 de março de 1985, era afiliada à Rede Manchete e
tinha como seus donos ACM Júnior e César Mata Pires, genro de ACM. No final de
1986, a Rede Globo oficializa à TV Aratu a não renovação do contrato de
transmissão.
Waldir Pires estava atormentado com essa situação
desde o final de 1986, ou seja, o fato foi consumado antes dele tomar posse
como governador. Definitivamente, ACM se municiou de todas as condições
favoráveis pela condição de Ministro das Comunicações para golpear a família
Vianna e dominar a comunicação do estado, visto que já era o dono do jornal
Correio da Bahia, fundado em 1978. Waldir procurou o presidente Sarney, ainda
em novembro de 1986, informando sobre os impactos que aquela decisão teria para
o PMDB e para seu governo. Como seria possível aparelhar o seu adversário, derrotado
de forma humilhante, semanas antes, premiando-o com poder fogo suficiente para
criar sérios problemas ao seu governo? O que Waldir ainda não sabia é que
Sarney fazia parte do jogo. Antes da conversa com Waldir, Roberto Marinho e ACM
já tinham se reunido com Sarney, exposto o plano e este não se opôs. A Globo
tinha autonomia no governo para fazer o que quisesse. Coincidência ou não, a TV
Mirante, do Maranhão, foi fundada em 1987, por Fernando Sarney, filho de José
Sarney, como transmissora dos canais SBT e, em 1991, passa a ser a transmissora
da Rede Globo.
Em 1987, a bancada federal do PMDB baiano,
denunciou a Sarney o escândalo das concessões de estações de rádio FM
praticadas por ACM, em benefício de pessoas ligadas a ele. À época, o ministro
admitiu que pudesse ter beneficiado algumas pessoas, corroborando que tais
concessões eram feitas de acordo com interesses do governo. De acordo com o
Ministério das Comunicações e do Diário Oficial da União, entre
1985 e 1988, durante todo o governo Sarney, foram outorgadas 632 emissoras de
rádio FM, 314 de rádio OM e, 82 concessões de TVs, totalizando 1.028 concessões
e permissões.
O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação
(EPCOM) ilustrou como se estruturou o chamado, “coronelismo eletrônico”, baseado
no domínio de emissoras de televisão. O jornalista Sérgio Murillo, presidente
da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) avaliou, que “ACM ajudou a formar
a imagem do ministério como um cartório de grupos de rádio e TV do país. Ele
era o agente político desses grupos que controlam a mídia no Brasil. E foi um
dos mais competentes neste sentido, nessa tradição de misturar os interesses
públicos com interesses privados”.
Na caminhada para 1986, em determinado momento,
ainda na fase das articulações, ventilou-se a possibilidade de composição com o
PDS, incluindo ACM, nos moldes do que Tancredo Neves construiu em 1985. Era um
novo momento do país, era a Nova República, a ditadura derrotada, existiam
novas possibilidades e desafios. Era a hora da abrangência, não da exclusão.
ACM também não descartou essa aliança, não tinha interesse em disputar o
governo da Bahia, mas queria uma vaga no Senado. Nessa discussão, os dois lados
sabiam que existia um risco calculado, pois os anos passados deixavam as pontes
bastante avariadas e atravessá-las seria um alto risco. Waldir experimentou o
exílio, as dificuldades para sobreviver, sentira a violência da ditadura,
consigo e com vários companheiros de caminhada. Antônio Carlos fez o caminho
oposto, participou de tudo no golpe de 1964, era um dos homens fortes do regime
militar, governou em três oportunidades indicado pelos militares. ACM só foi
consagrado pelo escrutínio popular nas eleições de 1990, na sucessão de Nilo
Coelho. “Os homens fazem a sua história. Porém, não a fazem como querem, sob
circunstâncias de sua escolha, e, sim, sob aqueles com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas do passado”. Karl Marx. As circunstâncias
históricas e o legado do passado não permitiram que selassem a aliança.
Como prometido durante a publicação da primeira
parte sobre a vida e as controvérsias da carreira política de Waldir Pires,
essa segunda parte tratou da convivência entre WP e ACM. Como essa narrativa se
estendeu um pouco mais do que imaginei, será necessário descrever, em outro
texto, sobre o poder de ACM em interferir, via governo federal, para dificultar
as ações do governo Waldir Pires e, consequentemente, sua renúncia para
concorrer, junto com Ulisses Guimarães, nas eleições presidenciais de 1989.
José Cássio Varjão é
cientista político com MBA em Cooperação Internacional e Políticas
Públicas e pós-graduado em Administração Municipal e Desenvolvimento Local;
Administração Pública e Gestão de Cidades Inteligentes; e Gestão de Negócios
Inovadores.