quarta-feira, 28 de maio de 2025

WALDIR PIRES – A VIDA POLÍTICA E SUAS CONTROVÉRSIAS (PARTE 1)

 

WALDIR PIRES – A VIDA POLÍTICA E SUAS CONTROVÉRSIAS (PARTE 1)


Waldir Pires foi deputado, governador da Bahia, ministro e vereador || Foto Marcelo Casal Jr./ABr

 Waldir sabia dos riscos da sua atitude e, ao se despedir do cardeal, com certa acidez e um leve sorriso nos lábios disse: O senhor vai responder lá em cima, e muito fortemente, pela injustiça que está cometendo.

José Cássio Varjão

Um dos nomes de maior relevância, da política baiana e brasileira foi o social-democrata Francisco Waldir Pires de Souza. Advogado, professor da Universidade Católica de Salvador, professor da Universidade de Brasília, professor da Universidade de Dijon, na França, consultor-Geral da República no governo João Goulart, ministro da Previdência Social, no governo José Sarney, ministro da Controladoria-Geral da União e Ministro da Defesa, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, deputado estadual, deputado federal, governador e, por fim, vereador, de Salvador.

Como capítulo marcante do meu livro Eleições Históricas – Do Voto à História, a ser lançado nas próximas semanas, a eleição para o governo da Bahia, em 1986, foi um acontecimento memorável na história política da Bahia. Os olhos do ex-deputado federal Domingos Leonelli brilham quando lembra da campanha de 1986: “Uma campanha como aquela nunca se viu. Dificilmente se verá outra igual. Uma rebelião cívica. Waldir era o símbolo do anseio de liberdade acumulado ao longo dos anos”.

Para escrever sobre o processo eleitoral de 1986, no estado da Bahia, me debrucei, inebriado, nas quase 800 páginas dos dois volumes sobre a biografia de Waldir Pires, de autoria do jornalista, escritor e professor Emiliano José, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA. “A campanha de 1986 foi algo jamais visto na Bahia, pelo que suscitou de sonhos, de encantamento, de magia. Chegasse a hora que chegasse, às duas, às três, às cinco da manhã, ninguém arredava o pé, chovesse canivete, houvesse a tempestade que houvesse, fizesse chuva, fizesse sol, frio ou calor, as praças não se mexiam. Foi um caso de arrebatamento, um profundo caso de amor entre a população e seu líder. Um líder das massas. Quase um Messias”, sintetizou Emiliano José.

Principalmente pela controversa renúncia ao mandato de governador, para concorrer com Ulisses Guimarães, na eleição presidencial de 1989, pelo PMDB, esses dois textos, que escreverei, tem como objetivo trazer à tona algumas situações do jogo político que passaram ao largo pela população, que, ainda nesses dias, tece comentários, às vezes sem quaisquer parâmetros, como se “a decisão mais difícil da minha vida política”, frase dita por Waldir Pires, inúmeras vezes, tivesse sido uma escolha sem fundamento. Como exposto no título desse escrito, Waldir Pires viveu alguns confrontos ao longo da sua vida política que merecem especial atenção.

Nascido em Cajueiro, hoje município de Acajutiba, litoral norte da Bahia, em 1926, filho do casal Zeca Pires e dona Lucíola, mudou-se em 1929, com seus pais e irmãos, para Amargosa, a chamada Rainha do Café, no início do século XX. Fez o ginásio em Nazaré das Farinhas antes de seguir no final de 1941, para a Cidade da Bahia, a gigantesca Salvador, com seus 290 mil habitantes. Estudou no Colégio Estadual da Bahia, depois, Colégio Central e, finalmente na Faculdade de Direito da Bahia.

Em 1949, foi o orador da turma de Direito, uma honraria especial àquele aluno que obteve média superior a 7 em todas os exames escritos. A data da formatura, 5 de novembro, marcava o centenário do jurista Rui Barbosa, com a inauguração do fórum que leva seu nome, no Campo da Pólvora, Salvador. Com pompa, circunstância e a presença do governador Octávio Mangabeira, Waldir Pires foi o primeiro orador a ocupar a tribuna do fórum e o primeiro a se pronunciar na nova sede do Tribunal de Justiça da Bahia.

Exímio tribuno, um ano antes de se formar, em 1948, recebeu a visita do então prefeito de Amargosa, João Sales, convidando-o para ser o orador oficial da recepção ao governador Octávio Mangabeira, na inauguração da energia elétrica da cidade. “Discurse por Amargosa”, pediu João Sales. Ainda não havia envolvimento político, não estava vinculado a nenhuma corrente política. Quando chegou a Amargosa, soube que o governador não estaria presente, seria representado pelo secretário de Segurança Pública, Oliveira Brito. O líder do governo na Assembleia Legislativa, Antônio Balbino (PSD), também estaria presente e a vida de Waldir Pires tomou um rumo completamente inesperado para aquele momento da sua vida. Se João Mangabeira foi seu inspirador, Antônio Balbino foi seu tutor.

Um ano após a formatura em Direito, em 1950, Waldir Pires concorreu a deputado estadual pelo PSD (Partido Social Democrático). Era a confirmação, para Balbino, da sua vocação política e nada melhor do que jogá-lo aos leões, testá-lo na batalha da conquista de votos. Waldir obteve 2.664 votos. Outro concorrente, Josaphat Marinho ficou com 3.044 votos. Os dois se encontrariam em outras oportunidades do cenário político, como aliados ou como adversários. Antônio Balbino estava certo. O talento do rapaz para a política era inegável.

A carreira política de Waldir Pires estava se iniciando e os frutos da amizade com Antônio Balbino lhe renderam a indicação para o cargo de secretário de Governo de Régis Pacheco, eleito governador em 1950, aos 24 anos de idade. Um fato trágico a ser lembrado é que o candidato a governador pelo PSD, em 1950, era o deputado federal Lauro Farani Pedreira de Freitas, que morreu em acidente aéreo em 11 de setembro de 1950, na cidade de Bom Jesus da Lapa. O coordenador e homem forte da campanha de Lauro de Freitas era Antônio Balbino, que em três dias definiu Régis Pacheco, deputado federal e ex-prefeito de Vitória da Conquista, como o candidato do partido.

Em 1954, é eleito deputado estadual pelo PTB, com 7.162 votos, estava definitivamente inserido no mundo político. Nessa legislatura, entra na vida de Waldir Pires o maior desafeto e adversário da sua carreira política, Antônio Carlos Peixoto de Magalhães, que obteve 3.990 votos na eleição suplementar de 1955, bem abaixo de Waldir e o décimo eleito pela UDN, que elegeu onze deputados estaduais. Nesse período, não se rivalizaram e, em algumas oportunidades, Antônio Carlos fez seguidos elogios à atuação de Waldir Pires. Nessa legislatura Waldir Pires foi o líder do governo na Assembleia Legislativa. Josaphat Marinho também era deputado estadual.

Em 1958 é eleito deputado federal, com mandato a se encerrar em 1963. Com destacada participação na 41ª Legislatura da Câmara Federal, Waldir alçava voos no cenário nacional. Foi integrante ativo da Comissão de Constituição e Justiça, integrante da Frente Parlamentar Nacionalista, vice-líder da maioria no governo de Juscelino Kubistchek. Em 1961, em Genebra, Suíça, compôs a comissão que representou o Brasil numa conferência internacional, votando pela admissão da China à ONU.

Aos 36 anos, em 1962, se lançou à primeira campanha para o governo do estado da Bahia. Outro desafio, mais um degrau a subir e por pouco não obteve sucesso. Perdeu a eleição para Lomanto Júnior, ex-prefeito de Jequié, por meros 5% dos votos válidos. Aqui, surgiu a primeira controvérsia da carreira política de Waldir Pires, o improvável embate com dom Augusto Álvaro da Silva, o famoso Cardeal da Silva, nome da avenida que liga os bairros do Rio Vermelho e Federação, em Salvador.

Naquela disputa, Lomanto tinha o apoio dos partidos de direita, dos principais meios de comunicação e da Igreja Católica, enquanto Waldir tinha o apoio do PSD e do PCB. Antônio Guerra Lima, advogado e procurador-Geral do Estado no Governo de Waldir Pires (1986), afirmava que “não bastaria apenas constatar genericamente o apoio da Igreja Católica a Lomanto. Era imperativo afirmar o desempenho fervoroso e a dedicação pessoal do cardeal com a intenção de derrotar Waldir Pires, um anti-Cristo a quem era necessário abater”.

Dom Augusto Álvaro da Silva era um “príncipe católico” conservador, completamente absorvido pelo clima que o mundo vivia naqueles tempos de Guerra Fria, e agiu como um militante político influenciando o clero baiano, nas suas missas e sermões, a não votar no candidato dos comunistas. Com ataques diários, sendo amplamente divulgados pela imprensa, eram distribuídos panfletos espúrios, com o título de “Alerta Democratas”, constando os nomes dos candidatos “supostamente comunistas”. Parênteses para pensar: Alguma similaridade com a política praticada por alguns grupos atualmente?

Dia 6 de setembro de 1962, 31 dias antes das eleições, a manchete do jornal A Tarde revelava que a Igreja Católica dividia os candidatos ao governo do estado em duas classes: os bons e os maus. Na lata. Direto ao ponto, sem nenhuma sutileza. A matéria descrevia que “o perigo comunista mereceu a atenção dos sacerdotes, sendo ponto pacífico que a Igreja não transigirá com os candidatos vinculados ao credo de Moscou, ou com ele comprometidos, pelo perigo que representam para a segurança do regime democrático e para os princípios fundamentais defendidos pela Igreja Católica”.

Waldir Pires e os seus pais eram extremamente católicos, o que levou Zeca Pires a divulgar uma carta ao povo da Bahia, contra as atitudes do Cardeal da Silva. Após as eleições, seu pai divulgou outra carta, demonstrando grande revolta com as arbitrariedades do líder católico. Num dos trechos, Zeca Pires assim escreveu: “No último episódio eleitoral, da sucessão baiana, assistimos, com espanto e revolta, ao estrangulamento ou sacrifício da verdade e do esforço construtivo. Procuraram, sem fundamento, suspeitas sobre a ideologia de um moço, Waldir Pires, de sólida formação moral e cristã que, como pai católico, graças a Deus, eu a soube ministrar, com esmero e cuidado, pelo fato desse moço nutrir ideias de renovação e de progresso. É assim, de manifesta leviandade e covardia, o setor da igreja que, depois de aprovar seu nome, o desapoiou, na última hora, em uma guinada espetacular e esquisita. Descristianizaram-se, atrelando-se ao carro dos interesses humanos e das conveniências da vida. Hoje, o pseudocomunista representa bem o samaritano do evangelho, é mais cristão do que muitos sacerdotes”. Zeca Pires era coletor federal e foi o responsável pelo ensino do francês aos seus filhos.

Certo dia, numa manhã de domingo, dona Lucíola, sua mãe, “católica de berço e terço”, foi se confessar com o padre de Amargosa. Ajoelhou-se, confessou seus pecados (Waldir perguntava à mãe que raios de pecados ela tinha para se confessar, pois ele não encontrava pecado nela) e recebeu a sua penitência de ave-marias, pai-nossos e salve-rainhas. Quando estava saindo do confessionário, o padre disse: a senhora sabe que esse ano tem eleições? Ela respondeu afirmativamente. Continuou o padre, dizendo que ela não poderia votar no nome de Waldir Pires. Dona Lucíola levantou-se bruscamente, abriu a cortina do confessionário, e o pecado da ira caiu sobre ela: Fique sabendo o senhor que Waldir Pires é meu filho. O senhor me respeite. Isso é uma indignidade! Uma injustiça que estão fazendo com Waldir. Se fosse pecado, desse ela não pediria perdão. O padre imóvel e com os olhos esbugalhados, calou-se.

O embate em si, frente a frente, ocorreu quando o cardeal chamou Waldir para uma conversa no Palácio Episcopal, durante o processo eleitoral: Waldir, eu o chamei aqui porque soube que o senhor tem o apoio dos comunistas. Isso é verdade? Sim. Respondeu Waldir. A conversa seguiu com Waldir argumentando que não tinha motivos para recusar o apoio do PCB. Então, o cardeal vociferou: Se o senhor não recusar esse apoio, vou baixar uma instrução recomendando que os católicos não votem no senhor. Vou condenar sua candidatura. Waldir, impressionado pela frieza do cardeal, respondeu: Lamento, mas não recusarei. Tenho lutas comuns com eles, o petróleo, a energia, a luta pela igualdade social. Não há por que recusar esse apoio. Waldir sabia dos riscos da sua atitude e, ao se despedir do cardeal, com certa acidez e um leve sorriso nos lábios disse: O senhor vai responder lá em cima, e muito fortemente, pela injustiça que está cometendo.

No próximo texto falarei sobre o início da convivência entre Waldir Pires e Antônio Carlos Magalhães, a rivalidade criada com o passar dos anos, a interferência de ACM no governo Waldir em 1986 e, finalmente sobre a renúncia em 1989.

José Cássio Varjão é cientista político.

WALDIR PIRES – A VIDA POLÍTICA E SUAS CONTROVÉRSIAS (PARTE 2)


Os ex-governadores e ex-ministros Waldir Pires e Antônio Carlos Magalhães

 

O que Waldir ainda não sabia é que Sarney fazia parte do jogo. Antes da conversa com Waldir, Roberto Marinho e ACM já tinham se reunido com Sarney, exposto o plano e este não se opôs. A Globo tinha autonomia no governo para fazer o que quisesse.

Após as eleições de 1962, ainda se recuperando da derrota para Lomanto Júnior, Waldir voltou a Brasília para concluir seu mandato de deputado federal. Perder a eleição por meros 33.623 votos, sabendo que a Igreja Católica foi preponderante para sua derrota, era seu calvário, teria que aceitar, era fato consumado. Numa circunstância eleitoral, até então, inédita, mesmo com a derrota, os dois senadores eleitos para aquela legislatura, Antônio Balbino e Josaphat Marinho, eram da chapa de Waldir Pires.

Os primeiros anos da convivência entre Waldir Pires e Antônio Carlos Magalhães, dois deputados estaduais de primeiro mandato, eram cordiais, principalmente, porque ambos apoiavam o governador Antônio Balbino. ACM sabia da ligação próxima entre Waldir e o governador. O Diário da Assembleia, de 19 de junho de 1955, relata debate acalorado, ocorrido na tribuna da Casa, entre os deputados Adelmário Pinheiro e Josaphat Marinho, ambos da oposição, contra Waldir Pires, sobre a sua presença no governo de Régis Pacheco.

Aspas para Waldir: “Deixei a secretaria em fins de 1953, por imperativos de fidelidade pessoal e política ao hoje governador Antônio Balbino. E deixei as melhores relações pessoais com S. Excia., senhor governador Régis Pacheco. Deixei a secretaria pobre, como hoje o sou. Não tenho coisa nenhuma, absolutamente coisa nenhuma, e vivo exclusivamente dos meus subsídios. Não tenho títulos, nem imóveis ou bens pessoais”. Num aparte, o deputado Antônio Carlos Magalhães, emendou: “mas tem um grande patrimônio moral”. Os dois conviviam civilizadamente.

Em outro momento, conforme discurso publicado no Diário Oficial da ALBA, dia 21 de fevereiro de 1957, ACM fez importante intervenção em defesa do veto do governador a um aumento dos subsídios para os deputados. Foi um pronunciamento firme e contundente contra um acréscimo de 12 mil cruzeiros nos vencimentos dos parlamentares: “um escândalo contra a maioria dos assalariados baianos”, bradou ACM.

Enquanto a maioria dos deputados fazia apartes defendendo a majoração dos seus vencimentos, Waldir interveio afirmando que “a verba pretendida pelos seus pares, era inconveniente na essência, na substância”. Antônio Carlos agradeceu de imediato a manifestação de Waldir: “Eminente líder, agradeço o aparte de V. Excia., – e quando digo eminente líder, digo-o conscientemente por que em qualquer posição que V. Excia. se encontre, nesse plenário, V. Excia. é um líder da moralidade, um líder da boa causa! Consequentemente, tenho somente que agradecer o aparte de V. Excia. que vem em auxílio aos meus argumentos, e isso fulmina a todos quantos queiram sofismar a respeito de um assunto tão importante”.

Foram várias as oportunidades que os apartes, vindos de lado a lado, aconteceram com deferência mútua, sem os entraves da formação política, sobretudo por estarem em posições diametralmente opostas. Para aquele momento, exclusivamente o que os unia era a defesa do governo de Antônio Balbino. Waldir, por sua formação no PSD e rigorosa coerência democrática, não se encontrará na sua trajetória política quaisquer ligações com o campo da direita. Já Antônio Carlos, oriundo da UDN, foi peça chave para sustentação da ditadura militar no estado da Bahia, sendo nomeado pelos militares prefeito biônico em 1967 e, governador em duas oportunidades, em 1970 e 1978, pelos militares.

Em 1963, Waldir Pires é nomeado por João Goulart, presidente da República, e João Mangabeira, ministro da Justiça, para o cargo de consultor-geral da República, que hoje equivale a Advogado-Geral da União. Nessa época, ACM era deputado federal. Com o golpe militar de 1964 e a deposição do presidente João Goulart, Waldir Pires deixa o Palácio do Planalto, direto para o exílio no Uruguai. Waldir e Darcy Ribeiro foram os últimos a deixar o Palácio do Planalto, no momento em que Auro de Moura Andrade declarou vago o cargo de presidente da República, convocando o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, para assumir o cargo.

A reação de revolta de Tancredo Neves entrou para a história da política brasileira, com a célebre frase “Canalha! Canalha! Canalha”. Após quase dois anos no Uruguai, sem possibilidades de se manter financeiramente, Waldir desembarca no aeroporto de Orly, era o dia 18 de dezembro de 1965. A escolha por Paris se dava pelo conhecimento da língua e pela presença dos amigos Max da Costa, Raul Riff, Celso Furtado e Josué de Castro.

Lecionou, com destaque, na Universidade de Dijon, na área de Direito Constitucional Comparado. Sua aula inaugural sobre “Grandes Problemas Contemporâneos”, que revelava o clima político, econômico e social vivido pela América Latina, com a implantação de ditaduras, contou com a presença de quase 200 alunos e diversos professores, todos curiosos em conhecer aquele professor estrangeiro. Waldir tinha provocado grande entusiasmo nos presentes, pelo seu conhecimento de Direito Constitucional. Ao final, com o auditório em suas mãos e todos impressionados com sua oratória, ele se sentiu como “o conquistador do mundo”. Por um período, o sustento da sua família estava garantido.

“Paris, nunca mais te esquecerei, mas a minha luta é no meu país”.

Apesar de estabelecido na França, no final de 1969, Waldir decidiu, junto com Yolanda, que após concluir seus trabalhos em Dijon, voltariam ao Brasil. Não queria que os filhos fossem criados longe da sua pátria. “Paris, nunca mais te esquecerei, mas a minha luta é no meu país”. No início de 1970, decidiram voltar, mas para o Rio de Janeiro. Era impossível viver numa Bahia sob a dominação de Antônio Carlos Magalhães, com a tutela do AI-5. Após 12 dias de viagem, Waldir viu uma lancha da Polícia Federal se aproximando no navio, que parou a uns 500m do porto. Um sujeito de terno e gravata o interpelou, para que o acompanhasse. Chegaram à PF antes das 10h da manhã e o interrogatório durou todo o dia. Por que o senhor está voltando para o Brasil? O que o senhor pretende fazer aqui? O senhor volta para a subversão? Qual a organização subversiva o senhor pertence? Vai viver com qual renda? E a luta armada? Mesmo após todas as explicações, de que voltava para o Brasil para criar os filhos no país deles, a PF o liberou, dizendo que sabiam onde ele iria morar e que não poderia sair do Rio de Janeiro sem permissão policial.

Com a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, Waldir mais uma vez arruma as malas. Era chegada a hora de voltar para a sua amada Bahia, enfrentar quem quer que seja, reestruturar o PMDB e cumprir o que o povo baiano delegasse. Sua chegada a Salvador, em 12 de janeiro de 1979, foi apoteótica, com mais de 200 pessoas o aguardando no Aeroporto Dois de Julho. Eram dirigentes partidários, deputados, amigos e parentes.

Aquele não foi um acontecimento qualquer. Antônio Carlos não podia ignorar esse evento, tinha que demonstrar receptividade. Então, pediu a Clériston Andrade, que era o presidente do Baneb e ex-colega de Waldir na Faculdade de Direito, que, por sua vez, procurou Gerbaldo Avena, cunhado de Waldir, para sondar sobre o encontro entre os dois. A proposta era Waldir ir ao encontro de ACM. A resposta foi positiva, porém, com ACM indo ao encontro de Waldir. “Pode mandar dizer a Antônio Carlos que o recebo na minha casa. Ele sabe que sou um sujeito educado”, disse Waldir.

O encontro se deu na casa de Gerbaldo, irmão de Yolanda. Foi breve, ameno, com gentilezas e amabilidades entre os dois casais. ACM estava acompanhado de D. Arlete e, ao se despedirem, Waldir foi incisivo, dizendo que agradecia a visita, mas não poderia fazer o mesmo, pois ACM era um representante daqueles que oprimiam o Brasil e a Bahia, que exercia a ditadura no Estado, de modo que não poderia retribuir a visita. Com essa atitude, Waldir marca terreno na política do estado da Bahia, cortando os laços com quem governava com um chicote numa mão e uma mala de dinheiro na outra. Tinha retornado para resgatar o PMDB, que ainda era adesista, e dessa missão ele não abriria mão.

Em 1985, entre as atividades do ministério e a campanha para o governo do estado, a saúde de Waldir sentiu o esforço. No dia 27 de julho, após o encerramento da convenção do PMDB, um comício seria realizado na Praça da Sé, centro de Salvador. Com a aglomeração de pessoas nas ruas, o carro não pôde chegar ao local do evento, ficando estacionado da Rua da Ajuda. Waldir seguiu a pé com outros correligionários, quando se sentiu mal na Rua do Tira Chapéu, ao lado da Câmara de Vereadores. Tinha asma, que foi sendo agravada pelas andanças pelo interior do estado. Os adversários, cientes da sua enfermidade, faziam poeira aonde ele chegava para os comícios. Após esse incidente, Waldir foi para o Rio de Janeiro para a realização de exames mais apurados, tinha vivido na cidade por 9 anos. Preferiu fazer os exames no Hospital dos Servidores do Estado, se recusando a usar instituições privadas. Nessa internação, só foi permitida a presença de familiares ou de médicos. ACM, com seu diploma de médico, esteve no hospital para visitá-lo, talvez como um sinal de aproximação. Porém, foi enfaticamente barrado pela filha Ana Cristina, que não admitiu a presença dele.

Em 1986, durante um ato em alusão aos 100 dias do seu governo, Waldir e Yolanda Pires recebem a notícia do suicídio de Ana Lúcia Magalhães, de 28 anos, filha de Antônio Carlos. Mesmo sendo membro da família do seu principal adversário, o ato foi suspenso em respeito à dor da família Peixoto de Magalhães. Waldir e Yolanda passaram pela mesma tragédia, na morte de Waldemir Pires, filho do casal.

Enquanto Waldir estava no exílio, ACM já tinha sido nomeado prefeito de Salvador, governador do estado e seria empossado novamente como governador, em 15 de março daquele ano, 1979 – na mesma época que solicitou aquela visita, via Clériston Andrade. Com o término do seu primeiro mandato como governador, em 15 de março de 1975, Roberto Santos foi indicado para o cargo, escolha que contrariava ACM, que desejava a indicação de Clériston Andrade. Mário Kertész, ex-prefeito de Salvador, num documentário realizado pela Rádio Metrópole, de sua propriedade, disse que “após deixar o Palácio de Ondina, Antônio Carlos passava o dia de pijama, caminhando de um lado para o outro na varanda da sua casa, na Graça. Andava meio depressivo”. Concluiu. ACM entrava no ostracismo.

Em novembro de 1975, o ministro das Minas e Energia do governo de Ernesto Geisel, Shigeaki Ueki, resolveu demitir o presidente da Eletrobrás, Mário Bhering. Ueki e Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil, convenceram o Alemão, como era chamado Geisel, a nomear ACM para o cargo. Ligaram para ACM e adiantaram que ele seria nomeado para a Eletrobrás: “o presidente vai lhe chamar”. Antônio Carlos, que não sabia bulhufas sobre a função que deveria assumir, voou para o Rio de Janeiro, se trancou num quarto, por um fim de semana, para aprender o que fosse possível, com o intuito de impressionar o presidente. Fingindo não saber de nada, Geisel lhe fez o convite, e ACM verteu conhecimento sobre o desafio que iria assumir. ACM foi salvo pelo gongo, por Ueki e por Golbery. Esse momento da vida de ACM, foi preponderante para seu futuro político, pois, ao ser alçado a um cargo no governo federal, com dimensão nacional, ele passa a ter maior relevância dentro do grupo, que já foi comandado por Juracy Magalhães.

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Com a interferência do amigo Roberto Marinho, dono da Rede Globo, ACM foi indicado para o Ministério das Comunicações. A amizade dos dois foi construída no período em que esteve na Eletrobrás.

Entusiasta da candidatura de Mário Andreazza para suceder a João Figueiredo, ACM fez forte oposição à Paulo Maluf na convenção nacional do PDS, em 1984. Maluf venceu Andreazza por 493 a 350 votos. Antônio Carlos mudou de lado e compôs a Aliança Democrática que elegeu, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves. Com a interferência do amigo Roberto Marinho, dono da Rede Globo, ACM foi indicado para o Ministério das Comunicações. A amizade dos dois foi construída no período em que esteve na Eletrobrás. A influência de Marinho para a formação do governo era tão grande que Tancredo dizia: “eu brigo com o ministro de Exército, mas não com Roberto Marinho”. Quando o nome de ACM foi ventilado para compor o ministério, Tancredo disse a ACM, com o intuito de agradar ao dono da Globo: “o senhor se incomoda de Roberto Marinho lhe fizer o convite para ser ministro”? ACM respondeu: “não, não me incomodo, ele é meu amigo”. O detalhe dessa negociação de cargo é que Roberto Marinho não aceitou que ele fizesse a indicação, afirmando que “se o convite fosse dele, estaria enfraquecendo Antônio Carlos, que deveria ser visto como um ministro do presidente, e não da Globo”. Antônio Carlos Magalhães foi o único ministro a ficar na pasta por todo o governo Sarney.

O ápice da disputa política entre Waldir e ACM aconteceu quando a transmissão da Rede Globo, na Bahia, que era feita pela TV Aratu, desde 1969, tinha na família de Luiz Vianna uma das suas proprietárias. Já a TV Bahia, fundada em 10 de março de 1985, era afiliada à Rede Manchete e tinha como seus donos ACM Júnior e César Mata Pires, genro de ACM. No final de 1986, a Rede Globo oficializa à TV Aratu a não renovação do contrato de transmissão.

Waldir Pires estava atormentado com essa situação desde o final de 1986, ou seja, o fato foi consumado antes dele tomar posse como governador. Definitivamente, ACM se municiou de todas as condições favoráveis pela condição de Ministro das Comunicações para golpear a família Vianna e dominar a comunicação do estado, visto que já era o dono do jornal Correio da Bahia, fundado em 1978. Waldir procurou o presidente Sarney, ainda em novembro de 1986, informando sobre os impactos que aquela decisão teria para o PMDB e para seu governo. Como seria possível aparelhar o seu adversário, derrotado de forma humilhante, semanas antes, premiando-o com poder fogo suficiente para criar sérios problemas ao seu governo? O que Waldir ainda não sabia é que Sarney fazia parte do jogo. Antes da conversa com Waldir, Roberto Marinho e ACM já tinham se reunido com Sarney, exposto o plano e este não se opôs. A Globo tinha autonomia no governo para fazer o que quisesse. Coincidência ou não, a TV Mirante, do Maranhão, foi fundada em 1987, por Fernando Sarney, filho de José Sarney, como transmissora dos canais SBT e, em 1991, passa a ser a transmissora da Rede Globo.

Em 1987, a bancada federal do PMDB baiano, denunciou a Sarney o escândalo das concessões de estações de rádio FM praticadas por ACM, em benefício de pessoas ligadas a ele. À época, o ministro admitiu que pudesse ter beneficiado algumas pessoas, corroborando que tais concessões eram feitas de acordo com interesses do governo. De acordo com o Ministério das Comunicações e do Diário Oficial da União, entre 1985 e 1988, durante todo o governo Sarney, foram outorgadas 632 emissoras de rádio FM, 314 de rádio OM e, 82 concessões de TVs, totalizando 1.028 concessões e permissões.

O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (EPCOM) ilustrou como se estruturou o chamado, “coronelismo eletrônico”, baseado no domínio de emissoras de televisão. O jornalista Sérgio Murillo, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) avaliou, que “ACM ajudou a formar a imagem do ministério como um cartório de grupos de rádio e TV do país. Ele era o agente político desses grupos que controlam a mídia no Brasil. E foi um dos mais competentes neste sentido, nessa tradição de misturar os interesses públicos com interesses privados”.

Na caminhada para 1986, em determinado momento, ainda na fase das articulações, ventilou-se a possibilidade de composição com o PDS, incluindo ACM, nos moldes do que Tancredo Neves construiu em 1985. Era um novo momento do país, era a Nova República, a ditadura derrotada, existiam novas possibilidades e desafios. Era a hora da abrangência, não da exclusão. ACM também não descartou essa aliança, não tinha interesse em disputar o governo da Bahia, mas queria uma vaga no Senado. Nessa discussão, os dois lados sabiam que existia um risco calculado, pois os anos passados deixavam as pontes bastante avariadas e atravessá-las seria um alto risco. Waldir experimentou o exílio, as dificuldades para sobreviver, sentira a violência da ditadura, consigo e com vários companheiros de caminhada. Antônio Carlos fez o caminho oposto, participou de tudo no golpe de 1964, era um dos homens fortes do regime militar, governou em três oportunidades indicado pelos militares. ACM só foi consagrado pelo escrutínio popular nas eleições de 1990, na sucessão de Nilo Coelho. “Os homens fazem a sua história. Porém, não a fazem como querem, sob circunstâncias de sua escolha, e, sim, sob aqueles com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado”. Karl Marx. As circunstâncias históricas e o legado do passado não permitiram que selassem a aliança.

Como prometido durante a publicação da primeira parte sobre a vida e as controvérsias da carreira política de Waldir Pires, essa segunda parte tratou da convivência entre WP e ACM. Como essa narrativa se estendeu um pouco mais do que imaginei, será necessário descrever, em outro texto, sobre o poder de ACM em interferir, via governo federal, para dificultar as ações do governo Waldir Pires e, consequentemente, sua renúncia para concorrer, junto com Ulisses Guimarães, nas eleições presidenciais de 1989.

José Cássio Varjão é cientista político com MBA em Cooperação Internacional e Políticas Públicas e pós-graduado em Administração Municipal e Desenvolvimento Local; Administração Pública e Gestão de Cidades Inteligentes; e Gestão de Negócios Inovadores.

domingo, 25 de maio de 2025

A REABILITAÇÃO MUSICAL DE VALDEMAR BROXINHA

 

A REABILITAÇÃO MUSICAL DE VALDEMAR BROXINHA

Valdemar Broxinha deu um show no Katixa, em Una 

 Por Walmir Rosário*

Os sonhos fazem parte da vida de qualquer ser humano, isto é fato, embora possam ser diferentes, como os dedos de nossas mãos, mas existem e são guias para a formação de cada um. Apesar de não ter qualquer estudo ou formação em psicologia ou atividade afim, já presenciei muita gente abandonar os sonhos da infância e juventude e partir para caminhos diferentes.

Volta e meia somos surpreendido com mudanças substanciais na vida de uma pessoa que enveredou por um caminho profissional e lá pra frente embica por outro, sem qualquer aviso-prévio. Na carreira acadêmica não é diferente e não sei o que passa na cabeça dessas pessoas, que próximos a receberem os canudos mandam tudo pros ares, recomeçam em outro curso e se sentem felizes.

Eu não escondo a admiração que tenho pelas pessoas que desde cedo se envolvem pela carreira musical – mesmo a amadora –, pela dedicação, como se não houvesse “outro amanhã” nesse mundão de Deus. Envolvem-se com a arte de cantar ou os instrumentos musicais nas manhãs, tardes e noites com a vocação de um monge a repetir mantras sagrados com a maior tranquilidade.

Num desses sábados passados, como de costume, cheguei à casa de meu amigo e parceiro de ronda nos bares de Canavieiras, Valdemar (Araújo) Broxinha, para sairmos sem lenço ou documento. Jogaríamos conversa fora, veríamos os amigos, apreciaríamos algumas cervejas, tira-gostos de sustança, sempre ao som do violão e voz desse sonoro amigo.

Para minha surpresa, ele já me esperava na varanda fazendo vibrar as cordas do violão em sonoras melodias. Espantei-me, não pelo fato de tocar e cantar, mas das músicas que ora executava com total maestria, pois se tratavam das obras de Sir Charles Spencer "Charlie" Chaplin, Jr, compostas para seus filmes, e que fizeram e fazem um estrondoso sucesso em todo o mundo.

Ele dedilhava Smille, do filme Tempos Modernos; Feelings, de Morris Albert; passando por Maria Helena, cantada por Altemar Dutra; dentre outras obras de sucesso. E Valdemar somente encostou o violão para me servir uma bela cachaça, Amansa Búfalo, se não me engano. Retomou a apresentação apenas com a minha presença na plateia. Senti-me deverasmente privilegiado.

Como sou conhecedor do sentimento de Valdemar Broxinha, me conservei calado, ouvindo com atenção aos acordes sonoros do violão e sua voz suave, apaixonada pelo repertório escolhido. Nosso músico não tem nada a ver com o outro conterrâneo baiano, João Gilberto, mas também se irrita com os presentes que não respeitam a apresentação artística, mesmo em um boteco.

Nos áureos tempos da Bossa Nova e Jovem Guarda Valdemar Broxinha, crooner da Banda Christians, de Canavieiras, era sucesso garantido em suas apresentações nas matinês, vesperais e soirées. Entre os pontos altos da banda, além do repertório e sonoridade, a impecável vestimenta de cortes bem assentados nos smokings, passeio completo e, no máximo esporte fino.

E o repertório dos Christians não ficava nada a dever aos grandes artistas nacionais e internacionais, tanto assim que ensaiavam os novos lançamentos para entregar – de pronto –, aos seus fãs. Naquela época fazia sucesso a música “Meu nome é Gal” e os músicos se esmeraram nos ensaios a semana inteira visando estar tinindo na apresentação de domingo em Camacan.

Mas eis que nosso artista resolveu esnobar e, sem comunicar aos integrantes da banda, se apresentaria com uma veste hippie, incluindo uma peruca com os cabelos desgrenhados como a própria Gal Costa. E a plateia não cansava de pedir o sucesso Meu nome é Gal. A banda faz uma pausa e ao retornar, entra o crooner Valdemar Araújo com seu personagem cantando como se fosse a própria Gal Costa.

Assim que entram no palco e começam a cantar, a plateia, atônita, inicia a apupar o personagem encenado por Valdemar, que contrastava com o restante dos músicos, estes em seus comportados ternos. Nova música, Valdemar retorna com sua vestimenta padrão e o baile segue normalmente, embora nosso crooner tenha permanecido magoado com as troças.

O show em Camacan foi a gota d’água para Valdemar encerrar sua carreira, sob o pretexto de prejuízo nos seus afazeres profissionais na empresa em que era dirigente. Agora somente tocava com os amigos. E foi justamente o amigo Batista quem resolveu reabilitá-lo na sua carreira intermunicipal, marcando com seu compadre Almir uma apresentação no conceituado boteco Katixa, na vizinha cidade de Una.

E na sexta-feira partimos para Una com a disposição de presenciar uma apresentação de Valdemar Broxinha, em alto estilo, dando a volta por cima em um show intermunicipal, após quase meio século do episódio de Camacan, a ser definitivamente esquecido. Batista, este que vos fala, o Almirante Nélson e Alberto Fiscal. Apoio moral em peso.

Reunido o público frequentador todas as atenções eram voltadas para Valdemar Broxinha e seu violão. E ele iniciou o show com muito cuidado, se preparou com as honras da casa após umas cervejas e um mocofato de fazer gosto. Sou testemunha e dou fé que Valdemar foi sucesso absoluto, tanto assim que duas novas apresentações foram agendadas: uma em Canavieiras e a volta triunfal a Una.

Finalmente o fantasma de Camacan foi exorcizado!


*Por Walmir Rosário

quinta-feira, 22 de maio de 2025

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015 CANAVIEIRAS DESBANCA SÃO PAULO E PROVA QUE O RODÍZIO COMEÇOU AQUI Por Walmir Rosário Parece que os historiadores têm memória curta! Impossível não se lembrarem de que rodízio de serviços prestados pelo governo e suas concessionários são coisa deste mundo moderno. Aí que vocês se enganam. Basta botar a mão na cabeça e puxar pela memória que vão se dar conta que não é São Paulo a pioneira no sistema de rodízio, nem mesmo a circulação de veículos, inaugurado anos atrás, nem o de água, cantado e reclamado em verso e prosa até os dias de hoje. Já deveria estar inscrita no Guines Book, o livro de recordes, caso algum canavieirense de memoria e boa vontade assim quisesse. Bastaria um simples telefonema, um simplório e-mail para os gringos conferirem o feito e desbancar São Paulo. Pois fiquem sabendo quem interessar possa que esse feito ainda vai ser motivo de orgulho, com livros de teses escritos para comprovar essa orgulhosa marca. Para que se restabeleça a verdade, São Paulo pode, no máximo, alcançar o segundo lugar. Esse motor ainda é pequeno em comparação ao Locomóvel E era a “Locomóvel”, nome de batismo popular dado à possante máquina que aportou por aqui à bordo de um vapor da Bahiana e transportada à rua Ruy Barbosa, local de sede da briosa “Luz e Força”, ou para os menos esclarecidos o motor de luz. Quem não lembra da festa iniciada com discursos e foguetórios para comemorar a chegada de um potente motor de luz! Era a glória, para os políticos de então, a começar pelo prefeito Edson Castro, autor do pedido. E chamava a atenção o tamanho da Locomóvel, que para os mais viajados parecia um motor de navio transatlântico, embora para outros se tratasse de uma cabeça de locomotiva vinda do exterior para gerar energia elétrica de qualidade em Canavieiras. Nem mesmo essa grandeza toda seria capaz de fornecer a potente iluminação – se comparada aos candeeiros, fifós, placas e aladins das residências – em toda a cidade. Como a potencia foi reconhecida insuficiente, um conhecido eletricista recomendou ao prefeito que não se avexasse com isso e estabelecesse um rodízio no fornecimento da moderna energia elétrica disponível das 18 às 23 horas. E a energia se despedia solenemente, com os devidos avisos de antecedência do desligamento, para dar tempo aos notívagos e os mais afoitos casais de namorados chegarem a casa ainda no claro. – Vai ser batata! – disse o eletricista ao prefeito, detalhando o projeto na ponta da língua: – Num dia, a gente liga as ruas Ruy Barbosa (onde ficava a Locomóvel), rua 13 (que ainda não era Octavio Mangabeira), General Pederneiras e dos Pescadores. No outro será a vez do complexo de praças da Bandeira, 15 de Novembro, São Boaventura e a avenida J. J. Seabra (hoje ACM). No terceiro dia seriam contempladas a, Benjamim Constant, Marechal Deodoro e Barão de Cotegipe –. E assim foi vivendo a sociedade canavieirense, que marcavam suas festas e demais eventos sociais para os dias de clarão em sua residência, gozando, portanto, das modernidades de então. Mas como a teoria de Murphy nos ensina que não existe nada ruim que não possa piorar, eis que a gloriosa Locomóvel bateu biela, quebrou pistom, queimou válvulas e chegou ao fim de linha. Eis que o que era ruim ficou pior. Eram os tempos do prefeito Osmário Batista, que prometeu substituir a Locomóvel por um gigantesco motor, equipamento vindo do exterior, não se sabe ao certo se Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Mas vinha com a missão de iluminar todo o território canavieirense, até a distante Potiraguá, ainda dentro dos seus domínios. Também não deu certo e o possante motor, logo apelidado de “elefante branco”, dada a sua pífia serventia. Foi o caos. Mas eis que as gestões políticas e uma comissão de alto nível liderada pelo prefeito Edmundo Lopes de Castro fez ver ao governador Lomanto Júnior que uma cidade do porte e da importância de Canavieiras não podia ficar às escuras, sob pena dos eleitores não acertarem nem mesmo depositar os votos nas urnas. Diante de tão qualificado e irrecusável apelo, eis que no dia 13 de dezembro de 1963 três conjuntos de moto geradores doados pelo governador Lomanto Júnior começam a funcionar, justamente no dia consagrado a Santa Luzia. Com isso, a Locomóvel foi aposentada e hoje, sequer, lembram dela, caiu no mais absoluto esquecimento. Entretanto, os três pequenos conjuntos de moto geradores não se encontravam à altura dos costumes de tradições de Canavieiras. É certo que deu sua contribuição, aumentando em uma hora o fornecimento de energia elétrica – das 18 às 24 horas – o era um considerável avanço, mas a vida noturna, a boemia, já não podia continuar às escuras, o cinema pretendia exibir uma segunda sessão, o clube social continuar as festas até o raiar do dia e sem energia nada disso seria possível. Foi então que no fatídico dia de 23 de agosto de 1973, sob as benções de Antônio Carlos Magalhães e do prefeito João Perelo, Canavieiras se integra ao seleto grupo de cidades interligadas ao sistema da Barragem do Funil e quiçá o moderno sistema de Paulo Afonso. Um dia como esse era especial e merecia uma comemoração à altura do benefício. Imediatamente, um grupo de rapazes alegres e chegados a um dia de folguedos sugerem – ou melhor, já levaram pronto – o ato oficial para decretar feriado em todo o Município, inclusive no Banco do Brasil. E assim foi feito: O prefeito João Perelo assinou o decreto e a cachaçada “comeu no centro” até altas horas do dia seguinte. Festejou-se muito, para nada! É que o governador Antônio Carlos Magalhães, o “Toinho Ternura” – que tinha fiat lux –, não estava presente às comemorações da nova iluminação e marcou uma nova data, 23 de outubro de 1973, esta oficial, com direito a aplauso de toda a sociedade. E para isso, um novo feriado foi decretado – também com a ajuda do grupo Tolé, Tedesco e cia.. – com o competente fechamento dos banco. Mais uma homérica cachaçada, em que até um professor e ex-pastor – um homem de Deus, portanto – se juntou à gandaia. Uma festa de arromba, digna do esquecimento da Locomóvel, máquina usada e abusada para não deixar a cidade às escuras, mas agora aposentada e enterrada num ferro-velho qualquer desse Brasil afora. Tolé até hoje ainda se lembra da maldade que fez com “velho professor” e da homérica ressaca sofrida. Mas, o que fazer, se até o Dr. Boinha Portela tinha colocado toda as mercadorias de O Berimbau à disposição dos amigos, com a recomendação expressa dada a Neném de Argemiro de não cobrar nada de ninguém, pois a farra seria bancado do seu próprio bolso. Realmente, foi por uma causa justa, justíssima!

 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CANAVIEIRAS DESBANCA SÃO PAULO E PROVA QUE O RODÍZIO COMEÇOU AQUI

Por Walmir Rosário
Parece que os historiadores têm memória curta! Impossível não se lembrarem de que rodízio de serviços prestados pelo governo e suas concessionários são coisa deste mundo moderno. Aí que vocês se enganam. Basta botar a mão na cabeça e puxar pela memória que vão se dar conta que não é São Paulo a pioneira no sistema de rodízio, nem mesmo a circulação de veículos, inaugurado anos atrás, nem o de água, cantado e reclamado em verso e prosa até os dias de hoje.
Já deveria estar inscrita no Guines Book, o livro de recordes, caso algum canavieirense de memoria e boa vontade assim quisesse. Bastaria um simples telefonema, um simplório e-mail para os gringos conferirem o feito e desbancar São Paulo. Pois fiquem sabendo quem interessar possa que esse feito ainda vai ser motivo de orgulho, com livros de teses escritos para comprovar essa orgulhosa marca. Para que se restabeleça a verdade, São Paulo pode, no máximo, alcançar o segundo lugar.
Esse motor ainda é pequeno em comparação ao Locomóvel
E era a “Locomóvel”, nome de batismo popular dado à possante máquina que aportou por aqui à bordo de um vapor da Bahiana e transportada à rua Ruy Barbosa, local de sede da briosa “Luz e Força”, ou para os menos esclarecidos o motor de luz. Quem não lembra da festa iniciada com discursos e foguetórios para comemorar a chegada de um potente motor de luz! Era a glória, para os políticos de então, a começar pelo prefeito Edson Castro, autor do pedido.
E chamava a atenção o tamanho da Locomóvel, que para os mais viajados parecia um motor de navio transatlântico, embora para outros se tratasse de uma cabeça de locomotiva vinda do exterior para gerar energia elétrica de qualidade em Canavieiras. Nem mesmo essa grandeza toda seria capaz de fornecer a potente iluminação – se comparada aos candeeiros, fifós, placas e aladins das residências – em toda a cidade.
Como a potencia foi reconhecida insuficiente, um conhecido eletricista recomendou ao prefeito que não se avexasse com isso e estabelecesse um rodízio no fornecimento da moderna energia elétrica disponível das 18 às 23 horas. E a energia se despedia solenemente, com os devidos avisos de antecedência do desligamento, para dar tempo aos notívagos e os mais afoitos casais de namorados chegarem a casa ainda no claro.
– Vai ser batata! – disse o eletricista ao prefeito, detalhando o projeto na ponta da língua:
– Num dia, a gente liga as ruas Ruy Barbosa (onde ficava a Locomóvel), rua 13 (que ainda não era Octavio Mangabeira), General Pederneiras e dos Pescadores. No outro será a vez do complexo de praças da Bandeira, 15 de Novembro, São Boaventura e a avenida J. J. Seabra (hoje ACM). No terceiro dia seriam contempladas a, Benjamim Constant, Marechal Deodoro e Barão de Cotegipe –.
E assim foi vivendo a sociedade canavieirense, que marcavam suas festas e demais eventos sociais para os dias de clarão em sua residência, gozando, portanto, das modernidades de então. Mas como a teoria de Murphy nos ensina que não existe nada ruim que não possa piorar, eis que a gloriosa Locomóvel bateu biela, quebrou pistom, queimou válvulas e chegou ao fim de linha. Eis que o que era ruim ficou pior.
Eram os tempos do prefeito Osmário Batista, que prometeu substituir a Locomóvel por um gigantesco motor, equipamento vindo do exterior, não se sabe ao certo se Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Mas vinha com a missão de iluminar todo o território canavieirense, até a distante Potiraguá, ainda dentro dos seus domínios. Também não deu certo e o possante motor, logo apelidado de “elefante branco”, dada a sua pífia serventia.
Foi o caos. Mas eis que as gestões políticas e uma comissão de alto nível liderada pelo prefeito Edmundo Lopes de Castro fez ver ao governador Lomanto Júnior que uma cidade do porte e da importância de Canavieiras não podia ficar às escuras, sob pena dos eleitores não acertarem nem mesmo depositar os votos nas urnas.
Diante de tão qualificado e irrecusável apelo, eis que no dia 13 de dezembro de 1963 três conjuntos de moto geradores doados pelo governador Lomanto Júnior começam a funcionar, justamente no dia consagrado a Santa Luzia. Com isso, a Locomóvel foi aposentada e hoje, sequer, lembram dela, caiu no mais absoluto esquecimento.
Entretanto, os três pequenos conjuntos de moto geradores não se encontravam à altura dos costumes de tradições de Canavieiras. É certo que deu sua contribuição, aumentando em uma hora o fornecimento de energia elétrica – das 18 às 24 horas – o era um considerável avanço, mas a vida noturna, a boemia, já não podia continuar às escuras, o cinema pretendia exibir uma segunda sessão, o clube social continuar as festas até o raiar do dia e sem energia nada disso seria possível.
Foi então que no fatídico dia de 23 de agosto de 1973, sob as benções de Antônio Carlos Magalhães e do prefeito João Perelo, Canavieiras se integra ao seleto grupo de cidades interligadas ao sistema da Barragem do Funil e quiçá o moderno sistema de Paulo Afonso. Um dia como esse era especial e merecia uma comemoração à altura do benefício.
Imediatamente, um grupo de rapazes alegres e chegados a um dia de folguedos sugerem – ou melhor, já levaram pronto – o ato oficial para decretar feriado em todo o Município, inclusive no Banco do Brasil. E assim foi feito: O prefeito João Perelo assinou o decreto e a cachaçada “comeu no centro” até altas horas do dia seguinte.
Festejou-se muito, para nada! É que o governador Antônio Carlos Magalhães, o “Toinho Ternura” – que tinha fiat lux –, não estava presente às comemorações da nova iluminação e marcou uma nova data, 23 de outubro de 1973, esta oficial, com direito a aplauso de toda a sociedade. E para isso, um novo feriado foi decretado – também com a ajuda do grupo Tolé, Tedesco e cia.. – com o competente fechamento dos banco.
Mais uma homérica cachaçada, em que até um professor e ex-pastor – um homem de Deus, portanto – se juntou à gandaia. Uma festa de arromba, digna do esquecimento da Locomóvel, máquina usada e abusada para não deixar a cidade às escuras, mas agora aposentada e enterrada num ferro-velho qualquer desse Brasil afora.
Tolé até hoje ainda se lembra da maldade que fez com “velho professor” e da homérica ressaca sofrida. Mas, o que fazer, se até o Dr. Boinha Portela tinha colocado toda as mercadorias de O Berimbau à disposição dos amigos, com a recomendação expressa dada a Neném de Argemiro de não cobrar nada de ninguém, pois a farra seria bancado do seu próprio bolso.

Realmente, foi por uma causa justa, justíssima!

sexta-feira, 16 de maio de 2025

DESFRUTANDO OS BENEFÍCIOS DA APOSENTADORIA - Por Walmir Rosário

 

DESFRUTANDO OS BENEFÍCIOS DA APOSENTADORIA

O agrônomo José Alberto de Lima

Por Walmir Rosário*

A vida do ser humano não se resume numa série de planos. Desde cedo os amigos e parentes começam a perguntar o que você quer ser quando chegar à fase adulta. Questionamentos fáceis, respostas difíceis, embora na maioria das vezes os pimpolhos respondam sem pestanejar: aviador, médico, motorista, engenheiro e, pasmem, até políticos.

Ainda nesta fase, não há qualquer planejamento, no sentido científico, quem sabe muitos sonhos – pensamentos – que passam pela cabeça da criança ou adolescente, geralmente o que busca se espelhar em parentes ou quaisquer outras pessoas com as quais se identifique. Quem sabe lá na frente mude de ideia ou abrace outras oportunidades. O que é natural.

Há quem defina como uma pessoa vocacionada, determinada pelos sonhos de criança a que abraçou a carreira com afinco. Tenho um amigo que é tal e qual o pensamento que ora descrevo. Estudou, se diplomou em engenharia agronômica em 1980 pela UFBa, trabalhou por longos 45 anos e sequer pensou em algum momento encerrar a carreira.

Alberto com a equipe de extensão de Ibicuí

Mas chega o momento em que chega a hora de desfrutar de mais descanso no seio da família, com fazem muitas dessas pessoas. Aqui cito um caso particular do meu amigo e ex-colega de trabalho, José Alberto de Lima, também conhecido como Alberto da Ceplac, jequieense que dedicou dois terços de sua vida à agronomia e ao Ministério da Agricultura.

E o exemplo da dedicada vida profissional transferiu para a família, da qual sempre se orgulhou, enaltecendo o convívio com a esposa, seus quatro filhos, todos bem-criados e que lhe deram sete netos. Sim, no alto dos seus 73 anos era chegada a hora de dar um tempo nas constantes viagens a trabalho, e privilegiar a família e os amigos mais chegados,

E Alberto colecionava amigos aos montes por onde passou. Assim que ingressou na Ceplac, lá pelos anos 1980, foi designado extensionista em Itapetinga, transferido dois anos depois para a cidade de Ibicuí, onde permaneceu por 14 anos. Em 1966, assume uma nova missão, desta vez como Auditor Fiscal do Ministério da Agricultura, em Salvador, até 1997.

Em 1998 foi Alberto é transferido para Itabuna, embora prestasse seus serviços por várias cidades, a exemplo de Juazeiro e Petrolina, principalmente na inspeção de frutas para a exportação. E nesses 45 anos soube colecionar os amigos por onde passou, desde os colegas de trabalho, clientes do Mapa e os muitos vizinhos das cidades que residiu.

Allberto e colegas auditores fiscais do Mapa

Sempre foi a alegria em pessoa, distinto no trato dos colegas e desconhecidos, pronto a servir a quem dele precisasse, desde a uma simples orientação ou outro préstimo qualquer. A índole de Alberto combinava perfeitamente com a do extensionista, disposto a solucionar desafios junto aos agricultores, expondo os problemas e orientando resolvê-los.

Assim que Alberto chegava ao Clube Seac (Sociedade dos Engenheiros Agrônomos do Cacau), em Itabuna, ao refeitório da Ceplac, ou qualquer bar era rodeado de colegas e amigos para um alegre bate-papo. E Alberto era – e é – sinônimo de bom humor, apropriado para contar uma boa história, levantar o astral de um amigo, as vitórias no dia a dia do seu trabalho.

Não posso deixar de citar aqui uma pequena indiscrição (no bom sentido). Sempre que convidado a participar de um encontro ou às comemorações de seu aniversário, eu observava atentamente. O anfitrião se preocupava com os mínimos detalhes sobre as preferências de cada um dos convidados, inclusive se preocupando em oferecer os comes e bebes de acordo com gostos e paladares.

Finalmente, a partir desse maio em curso, José Alberto (Alberto da Ceplac) entra em gozo definitivo dos benefícios de sua aposentadoria funcional, aos 73 anos bem vividos. Entretanto, ele continua em plena atividade no convívio da família, dos amigos, e torcendo pelo Bahia e Botafogo, times pelos quais divide sua paixão no futebol. Vida longa a Alberto!

*Radialista, jornalista e advogado.


terça-feira, 13 de maio de 2025

DENTRO E FORA - Hermann Hesse

 

DENTRO E FORA - Hermann Hesse



Era uma vez um homem chamado Friedrich, devotado às coisas do espírito e de
vastos conhecimentos. Gostava, porém, de concentrar todo o seu saber num
modo particular de pensar e menosprezava todos os demais. Tinha na mais alta
estima a Lógica, essa tão magnífica disciplina, e os conheci­mentos a que
dava o nome geral de Ciência.

"Duas vezes dois são quatro" - costumava ele dizer. -"nisso que eu acredito
e é partindo dessa verdade que um homem deve usar o raciocínio".

Não ignorava, é claro, que existiam muitas outras maneiras de pensar e
interpretar as coisas, mas não as considerava "ciên­cia" e, portanto, não
lhes dava importância. Conquanto fosse um livre-pensador, não era
intolerante no que dizia respeito á religião. Nisso comportava-se de acordo
com a atitude de tácita anuência dos cientistas. Há muitos séculos a Ciência
ocupava-se de tudo o que existia no mundo, e estimulava o desejo de
investigar e saber, com exceção de um único objeto: a alma humana. Deixava-a
a cargo da religião e não tomava a sério as especulações que ela fazia sobre
a alma mas, enfim, tolerava-as porque, com o decorrer dos séculos, tinham-se
con­vertido num hábito. Assim, no tocante à religião, Friedrich mantinha uma
atitude tolerante mas o que profundamente lhe repugnava e enfurecia era tudo
o que envolvesse e fosse reco­nhecido como superstição.  Somente admitia o
pensamento místico e as explicações mágicas entre povos ignorantes e
atra­sados quer de uma antigüidade remota; quer da atualidade pri­mitiva e
inculta de certas regiões exóticas. Desde que existia uma Lógica e uma
Ciência, deixara de fazer sentido recorrer a esses recursos obsoletos e
duvidosos.

Assim pensava e assim argumentava Friedrich. Quando ao seu redor se
manifestavam indícios de superstição, irritava-se e era como se tivesse sido
tocado por algo hostil e pernicioso.

O que mais o aborrecia era encontrar tais indícios entre seus iguais, homens
cultos que estavam tão familiarizados quanto ele com os princípios do
raciocínio científico. E nada lhe era mais doloroso e insuportável do que
ouvir certas idéias blasfemas como a que escutara, recentemente, de um homem
de elevada cultura, que afirmara esta coisa absurda: - o racio­cínio
científico não é, provavelmente, a mais elevada, rigorosa e intemporal forma
de pensamento mas, pelo contrário, a mais transitória, vulnerável e
perecível entre todas as formas de pensar! - Essa irreverente e perniciosa
opinião tinha seus adeptos, isso não podia Friedrich negar, mas era um
reflexo da miséria gerada pelas guerras, pela subversão e pela fome que
assolavam o mundo, e surgira como uma advertência, uma desculpa e um aviso
fantasmagórico escrito sobre a parede branca.

Quanto mais Friedrich sofria com a existência dessa nefasta idéia, mais
veementemente hostilizava os que a propagavam ou aqueles que supunha
esposarem-na secretamente. Na verdade, só alguns raros homens de erudição
tinham franca e abertamente confessado sua concordância com a nova corrente
de pensamento que, se lograsse expandir-se e triunfar, destruiria
provavelmente os alicerces da cultura e provocaria o caos no mundo.

Ora, até esse momento, ainda não se chegara a tal ponto e os cientistas que
tinham defendido abertamente a nova idéia eram tão poucos que podiam
perfeitamente passar por indi­víduos excêntricos ou fanáticos. Porém, uma
pequena gota do veneno, uma tênue irradiação desse pensamento, já era
per­ceptível aqui e ali. Nas camadas do povo e entre as pessoas semicultas
já se notava o florescimento de uma série de seitas, de escolas, de
correntes com seus mestres e discípulos, pre­gando ensinamentos em que a
Lógica e a Ciência não tinham vez. O mundo começava de novo se enchendo de
superstições, artes ocultas, magia negra, misticismo, necromância e outras
manifestações que o racionalismo quase extinguira e que era urgente combater
de novo. Mas a Ciência, talvez em virtude de um sentimento de íntima
fraqueza e de mal compreendida tolerância, silenciava.

Um dia, Friedrich foi visitar um de seus amigos, com quem já realizara
diversos estudos. Há muito tempo que não se viam e, enquanto subia as
escadas, procurou lembrar-se de quando estivera pela última vez na casa
desse amigo. Embora pudesse gabar-se, habitualmente, de uma excelente
memória, desta vez não conseguia recordar esse pormenor. Insensivelmente,
dei­xou-se possuir de uma certa irritação e desapontamento, ao bater à
porta.

Quando saudou o amigo Erwin, Friedrich notou logo na fisionomia jovial que
lhe retribuía o cumprimento um certo sorriso de afabilidade comedida que não
lhe parecia ter visto nunca nos tempos de quase diária convivência mútua.
Frie­drich pressentiu imediatamente que, por detrás desse sorriso, havia
algo de irônico ou hostil e, no mesmo instante, lembrou-se daquilo que ainda
há pouco estivera inutilmente vasculhando na memória: o seu último encontro
com Erwin. Sim, lembrava­-se muito bem que, embora não tivessem discutido,
separara-se dele com surda irritação, porquanto lhe parecia que Erwin não o
apoiava como devia, nessa época, nos ataques que vinha desencadeando contra
o pensamento místico e supersticioso. E também já se lembrava por que motivo
não voltara a pro­curar Erwin durante largo tempo. Era estranho como poderia
ter esquecido tudo isso! Na verdade, evitara o convívio do amigo unicamente
por causa dessa divergência, fato que ele sabia o tempo todo, muito embora
arranjasse sempre outros motivos para protelar uma nova visita a Erwin.

Eis que estavam agora frente a frente e parecia a Friedrich que a pequena
brecha de outrora se ampliara de um modo assustador. Em seu íntimo, sentia
que entre ele e Erwin faltava agora algo que sempre existira, aquela
atmosfera de sólida cooperação, de imediata compreensão e, até, de mútua
simpatia resultante de inclinações e propósitos comuns. Em vez disso,
Friedrich encontrou na sua frente uma expressão de estranheza, como se
através do próprio sorriso de Erwin pudesse espreitar para o vazio que havia
lá dentro. Cumpri­mentaram-se, falaram do tempo, que era feito de fulano e
cicrano, como iam de saúde... e Deus sabe como, a cada palavra proferida,
Friedrich via aumentar a sensação angus­tiante de incompreensão recíproca,
de estarem falando como dois desconhecidos perfeitamente alheados aos
problemas um do outro e não encontrarem um motivo que os conduzisse a uma
boa e agradável conversa. Erwin continuava com seu comedido sorriso afável,
que Friedrich já começava a odiar.

Numa pausa do penoso diálogo que se arrastava havia alguns minutos,
Friedrich viu na parede do tão conhecido gabinete de estudo de Erwin, uma
folhinha de papel presa por um alfinete. Essa imagem tocou-o fortemente,
despertando velhas lembranças: recordou que, durante os anos de estudante,
Erwin tinha o costume de conservar assim, diante dos olhos, uma sentença de
algum pensador ou os versos de algum poeta. Levantou-se e foi ler a folhinha
na parede.

Nela estava escrito, com a disciplinada caligrafia do co­lega, a seguinte
frase: "Nada está fora, nada está dentro. Pois o que está fora, está
dentro".

Friedrich empalideceu e manteve-se imóvel por instantes. Aí estava! Aí
estava o que ele tanto temia! Em outra época, talvez tolerasse aquilo,
talvez encarasse aquela frase com indul­gência, como uma inofensiva e, em
última análise, compreen­sível manifestação de sentimentalismo, digna de ser
estudada. Mas agora era diferente. Tinha a certeza de que aquelas pa­lavras
não tinham sido anotadas por causa de uma fugaz dis­posição poética nem por
um capricho que fizera Erwin retomar, após tantos anos, um hábito da
juventude. O que ali estava escrito, naquela parede, era uma confissão do
que ocupava atualmente o espírito do amigo: era uma prova de misticismo.
Erwin era mais um renegado.

A passos lentos, dirigiu-se ao amigo, cujo sorriso resplan­decia de novo.

- Explica-me aquilo - intimou Friedrich.

- Não conhecias essa sentença?   indagou Erwin, ama­velmente, erguendo a
cabeça.

- Sim, claro que conheço! ~ uma sentença mística, puro gnosticismo! Talvez
tenha alguma poesia, não discuto. Mas o que eu desejo que me expliques é por
que a tens pendurada na parede.

- Com todo o prazer - replicou Erwin. - Essa sentença é uma espécie de
introdução à nova epistemologia, a cujo estudo me dedico atualmente e à qual
devo algumas felizes realizações.

Friedrich mal podia esconder seu desgosto.

- Dizes que é então uma nova ciência do conhecimento? E acaso isso existe?
Que nome tem?

- Oh, na verdade, só é nova para mim. De um ponto de vista histórico, é uma
ciência bem antiga e respeitável, em­bora a conhecessem sob outro nome:
Magia.

A negregada palavra! Eis que ela fora pronunciada! Friedrich, profundamente
surpreendido, quase assustado, diante de uma confissão tão clara, via-se
frente a frente com seu inimigo supremo, na pessoa do amigo. Sentiu arrepios
e permaneceu calado. Não sabia se estava mais próximo da cólera ou se da
compaixão e das lágrimas. De qualquer modo, foi assaltado por uma terrível
sensação de perda irremediável. A amargura não o deixava encontrar palavras.
Depois, com uma ironia for­çada na voz, indagou:

- Abandonaste, então, a carreira de cientista para te tor­nares um... um
feiticeiro, é isso?

- Exatamente - retorquiu Erwin sem hesitai..

- Aprendiz de feiticeiro, eh?

- Correto.

Friedrich calou-se de novo, literalmente perplexo. Ouvia-se o tique-taque de
um relógio no quarto vizinho, tal o silêncio que reinava no gabinete.

- Sabes que, com isso, deixaste de ter qualquer coisa em comum com a
Ciência, que essa tua epistemologia não tem nenhuma relação com a verdadeira
teoria do conhecimento, enfim, que nenhuma seriedade pode haver num estudo
que se baseia em falsas premissas? E também deves saber, sem dúvida, que não
pode haver qualquer relação entre nós dois?

- Eu esperava que sim - respondeu Erwin. - Mas se co­locas as coisas nesse
plano... que posso eu fazer?

- O que podes fazer? - interrompeu Friedrich, quase gri­tando. - Não sabes o
que podes fazer? Acabar com essa brincadeira de mau gosto, com essa triste
crença em artes sobrenaturais, indigna de um homem de saber! Romper
com­pletamente e para sempre com tudo isso! É tudo o que te resta a fazer,
se acaso queres conservar a minha amizade e o meu respeito.

Erwin sorria, embora já não parecesse tão jovial quanto antes.

- Falas assim - disse ele em tom baixo, de maneira que a voz irritada de
Friedrich ainda parecia ressoar no gabinete - falas assim como se tudo
dependesse da minha vontade, como se estivesse em meu arbítrio escolher um
ou outro rumo, Friedrich. Mas não e assim. Não me compete optar. Não fui eu
que escolhi a magia. Foi ela que me escolheu. Friedrich soltou um profundo
suspiro.

- Então passa bem. - E levantou-se, sem estender a mão ao amigo.

- Assim não! - exclamou Erwin, agora mais agitado. - Não, assim não quero
que me deixes. Imagina que um de nós estivesse moribundo. Seria assim...
seria desta maneira que nos despediríamos?

- Qual de nós, Erwin, é o moribundo?

- Creio ser eu, Friedrich. Quem quer renascer deve estar disposto a morrer
primeiro.

Friedrich acercou-se novamente da folhinha na parede e releu a sentença
sobre o que está dentro e fora.

- Bom - disse ele, por fim. - Tens razão, nada adianta separarmo-nos
zangados. Seja como tu dizes e vamos supor que um de nós está moribundo. Eu
também poderia ser o moribundo. Porém, antes de partir, quero fazer-te um
pedido.

- Isso me agrada ouvir - disse Erwin. - Que poderei fazer por ti, como
despedida?

- Vou repetir a minha pergunta inicial, que foi ao mesmo tempo uma
intimação: explica-me essa sentença e trata de fazê­-lo o melhor que
possas - disse Friedrich, apontando para a folhinha.

Erwin refletiu por momentos e disse:

- Nada está fora, nada está dentro. O significado teoló­gico tu o conheces
tão bem quanto eu. Deus está em toda a parte. Ele está nos espíritos e na
natureza. Tudo é divino porque Deus está em tudo e para Ele não existe fora
nem dentro. Está identificado com todas as coisas. A isso chama­vam outrora
Panteísmo. Vamos agora ao conceito filosófico: a separação de dentro e fora
é um hábito mental mas não é forçosamente necessária. Existe para o nosso
espírito a possi­bilidade de transcender as fronteiras que lhe foram
traçadas e atingir o Além. E é para além dos limites do nosso mundo e da sua
estrutura de pares opostos e antagônicos, como o Bem e o Mal, o Belo e o
Feio e tantos outros, que se abrem novos e diversos conhecimentos. Ah, meu
caro amigo, devo te confessar: desde que se operou essa mudança em meu
pen­samento, nunca mais houve para mim palavras e frases, enun­ciados e
sentenças de um só sentido, senão que cada palavra, cada frase, passou a
revestir-se de dezenas, centenas de signi­ficados. E é nesse ponto que
começa aquilo que tu mais temes e detestas: a Magia.

Friedrich franziu o cenho e quis interrompê-lo mas Erwin olhou-o,
tranquilizador, e prosseguiu:

- Permiti-me que te dê um exemplo. Leva daqui uma coisa que me pertence,
algum objeto e, de vez em quando, observa-o. Verificarás que, ao
contemplá-lo, o objeto em si, com suas características próprias e limitadas,
suscitará no teu Intimo muitos outros significados, por exemplo, a nossa
antiga amizade, este encontro e uma infinidade de outros pensamentos que
nada têm a ver com esse insignificante objeto.

Erwin olhou ao seu redor, levantou-se e retirou de uma prateleira uma
estatueta de porcelana vidrada, entregando-a a Friedrich. E então disse:

- Aceita isto como presente de despedida. Quando este objeto, que ora
entrego em tuas mãos, estiver dentro e fora de ti, volta a visitar-me.
Porém, se continuar sempre fora de ti, como está agora, isso significará que
a nossa despedida de hoje foi para sempre!

Friedrich ainda tentou dizer alguma coisa mas Erwin já lhe estendia a mão,
apertando-a e dizendo "adeus" com uma expressão que não dava lugar a mais
palavras.

Friedrich desceu a escada (há quanto tempo subira ele aquela escada?),
caminhou vagarosamente rumo a casa, a pe­quena estatueta apertada na mão,
perplexo e, muito no seu íntimo, desolado. Parou diante da porta, sacudiu
por instantes o punho onde se encontrava a estatueta e, irritado, sentiu
von­tade de espatifar no chão aquela coisa ridícula. Não o fez e, mordendo
os lábios, entrou em casa. Nunca se sentira tão con­turbado, tão atormentado
por sentimentos contraditórios.

Procurou um lugar onde pôr a estatueta do amigo e co­locou-a na última
prateleira de uma estante de livros. Ali ficaria por enquanto.

Durante o dia, Friedrich olhava uma vez ou outra para a estatueta, meditando
sobre sua procedência e sobre o signifi­cado que tão inofensivo objeto
poderia ter em sua vida. Era uma pequena imagem humana, de um deus ou ídolo
antigo, não muito humana, de fato, pois tinha dois rostos, como o deus
romano Janus, Era de porcelana grosseira e muito mal-acabada. O seu vidrado
tinha rachado, talvez por excesso de calor. Certamente não era um trabalho
saído das mãos dos artífices gregos ou romanos. Mais parecia ter sido
moldada por algum povo primitivo da África ou das ilhas do Pacífico. Sobre
as duas faces, que eram réplica uma da outra, esboçava-se um sorriso
apático, inerte e descorado: era até chocante como o pequeno duende podia
desperdiçar seu tempo com um sorriso tão tolo.

Friedrich não conseguia habituar-se àquela imagem. Era-lhe inteiramente
repugnante, desagradável, embaraçava-o, in­comodava-o. Tirou-a da estante e
colocou-a sobre a estufa. Dias depois, retirou-a da estufa e levou-a para o
armário. Mas a estatueta de duas caras constantemente lhe surgia diante dos
olhos, sorrindo-lhe fria e estupidamente, impunha-se-lhe à vista, exigia
atenção. Duas ou três semanas depois, Friedrich retirou-a de seu gabinete e
colocou-a na ante-sala, entre algumas fotos da Itália e diversas recordações
que de lá trouxera, mas tão insignificantes que ninguém olhava para elas.
Agora, pelo menos, Friedrich só veria o ídolo primitivo nos momentos em que
saía ou entrava em casa, passando rapidamente por ele e sem sequer o olhar
de perto. Mas a verdade é que, mesmo sem querer admiti-lo, a estatueta
também ali o incomodava.

Como esse mostrengo de duas caras, esse pedaço de barro mal-acabado, tinha
penetrado em sua vida e o atormentava!

Meses depois, Friedrich regressou de uma curta viagem - de vez em quando,
empreendia essas excursões como se algo o impelisse a fazê-lo, movido por
uma súbita intranqüilidade   entrou em casa, passou pela ante-sala, foi
saudado pela sua governanta e leu a correspondência que o aguardava. Estava,
porém, inquieto e distraído, como se tivesse esquecido algo importante;
nenhum livro lhe apetecia ler, em nenhuma cadeira se sentia confortável.
Decidiu examinar seus próprios sentimentos: o que lhe estava acontecendo, de
repente? Teria esquecido alguma coisa importante? Sofrera algum
contra­tempo? Comera algo prejudicial? Tentava lembrar-se. Refle­tia e
procurava concluir se essa incômoda sensação o acometera antes de entrar em
casa, ou depois, na ante-sala, ou... Teve um brusco sobressalto e correu
para a ante-sala, procurando instintivamente com o olhar a estatueta de
porcelana.

Uma estranha sensação lhe percorreu o corpo quando não viu em seu lugar o
ídolo de duas caras. Como poderia ter desaparecido? Teria fugido em suas
pequenas pernas de barro? Voado? Algum estranho feitiço o chamara para as
longínquas paragens donde viera?

Friedrich reagiu, sacudindo a cabeça e repreendendo-se, sorridente, pelo
despropósito de sua angústia. Deveria, em pri­meiro lugar, descobrir a
estatueta em algum outro ponto, pro­curando-a calmamente na casa. Talvez,
distraído, a tivesse mudado de lugar. Depois, não a encontrando, chamou a
gover­nanta. Embaraçada, confessou que aquela estatueta lhe escor­regara das
mãos, quando arrumava a ante-sala.

- E onde está?

- Não existe mais. Tive-a várias vezes na mão, parecia-me uma coisa tão
forte e resistente. Mas ao cair desfez-se em mil pedaços. Ficou
irrecuperável, doutor. Joguei-a no lixo.

Friedrich mandou a governanta retirar-se. Sorriu. Não ficara contrariado.
Por Deus, que não sentia pena alguma pela perda do feio manipanso. Estava
livre dele. Agora teria sos­sego. Era o que deveria ter feito logo no
primeiro dia: espa­tifado aquela coisa em mil pedaços! Agora se apercebia do
que sofrera todo esse tempo! Como o ídolo lhe sorria com sua dupla cara
indolente, maliciosa, velhaca, diabólica! Já que a estatueta não mais
existia, podia confessar: sim, ele temia, sinceramente temia aquele pedaço
de barro cozido. Não era, afinal, um símbolo de tudo o que para Friedrich
era hostil e insuportável, tudo o que ele tinha na conta de pernicioso,
degradante e a ser implacavelmente combatido superstição, obscurantismo,
forças inimigas da clareza de consciência e de espírito? Não representava
aquela brutal força telúrica, aquele distante terremoto que ameaçava, por
vezes, destruir a verda­deira cultura sob um caos de trevas? Aquela mísera
imagem não lhe roubara o seu melhor amigo - não só o roubara como o
convertera em adversário? Bom, a coisa tinha desaparecido. Quebrada. Morta.
Era bom assim, muito melhor do que se ele próprio a tivesse quebrado.

Friedrich continuou dedicado a seus estudos e tarefas.

Mas parecia uma maldição. Agora, quando já se habituara mais ou menos à
presença da ridícula estatueta e a vê-la no seu lugar da ante-sala; quando,
com o decorrer do tempo, já se lhe tornara familiar e indiferente...
começava a sentir sua falta! Sim, sentia falta dela. Toda a vez que passava
pela ante-sala e via o lugar vazio que a estatueta costumava ocupar, uma
estranha angústia se apossava de Friedrich. O vazio ampliava-se em toda a
ante-sala, penetrava no seu gabinete de estudo, nos quartos, um vazio
estranho e cruel por toda a casa, como a súbita ausência fria de um parente
muito querido.

Dias horríveis e piores noites vieram torturar Friedrich. A falta do ídolo
de duas caras obcecava-o e dominava seus pen­samentos. Já não era apenas
quando passava pela ante-sala e via o lugar vazio, oh não, Fiedrich
sentia-se impelido a pensar nele a qualquer momento, desalojando de seu
espírito tudo o mais. Era como se a própria estatueta tivesse fisicamente se
instalado em sua mente e, de modo implacável, fosse roendo, devorando. tudo
o mais que lá dentro encontrara, gerando em seu íntimo um vazio semelhante
ao que criara no resto da casa.

Como se quisesse convencer-se do absurdo que era lamen­tar a perda do
insignificante objeto, recordava-o mentalmente em todos os seus pormenores.
Revia-o em toda sua tosca feal­dade, com seu sorriso velhaco e... sim,
chegava mesmo a tentar, com a boca torcida, imitar aquele sorriso!
Assediava-o a pergunta: as duas caras seriam realmente iguais? Uma delas,
talvez  a causa de uma pequena rachadura no vidrado, não teria uma expressão
ligeiramente diferente da outra? Uma expressão algo interrogativa? Como o
sorriso da Esfinge? Ah, e como era pavorosa a cor da pintura! Era verde...
não, tam­bém tinha azul. Ou era cinza? Tinha a certeza de que tam­bém havia
um pouco de vermelho. Era um vidrado que Frie­drich encontrava agora em
muitos outros objetos: via-o no faiscar de um raio de sol, batendo na
vidraça de uma janela, nos reflexos da chuva que batia nas pedras da
calçada...

Sobre o vidrado da estatueta também pensara muito du­rante a noite. Dava-se
conta de que "vidrado" era uma palavra esquisita, desagradável, falsa,
petulante. Analisava-a, decom­punha-a com raiva, soletrava-a furioso. Só o
diabo saberia dizer a que soava, de fato, essa palavra ruim, cheia de duplos
sentidos. Finalmente, lembrou-se de ter lido há muitos anos, durante uma
viagem, um livro que simultaneamente o espan­tara, torturara e, de modo
secreto o fascinara. Chamava-se A Princesa Vidrada. Era uma verdadeira
maldição! Tudo o que se relacionava com a estatueta - a cor, o vidrado, o
sor­riso - significava hostilidade, veneno, feitiço. A Princesa tam­bém fora
transformada por um inimigo que escondera sua maldade sob o artifício de um
sorriso. E recordou então o estranho sorriso do seu ex-amigo Erwin, quando
lhe entregou a estatueta! Tão estranho, tão veladamente hostil.

Friedrich lutava corajosa e virilmente contra essa obsessão que lhe
torturava o espírito e não se pode dizer que era mal sucedido em sua
batalha. Pressentia nitidamente o perigo e não queria enlouquecer. Preferia
mil vezes morrer. A luci­dez mental era imprescindível, a vida não. E
admitiu que talvez isso fosse o resultado de uma obra de magia, que Erwin,
com a ajuda dessa estatueta, o tivesse enfeitiçado de algum modo - fazendo
com que ele, o defensor implacável da inte­ligência esclarecida e da
ciência, caísse em poder dessas forças ocultas. Mas... se isso fosse
verdade, se ele era capaz de admitir essa possibilidade... então existia,
sim, então a magia era uma realidade! Não, era preferível morrer a admitir
seme­lhante coisa!

Um médico receitou-lhe passeios e abluções. À noite, procurou algumas vezes
distrair-se nas tavernas movimentadas. Mas pouco adiantava. Amaldiçoou Erwin
e amaldiçoou-se a si próprio.

Certa noite, estava ele deitado em sua cama e, como ocorria com freqüência
nessa época, desperto antes do tempo, sem conseguir conciliar de novo o
sono. Sentia-se indisposto e assustado. Perdera a antiga confiança nos
poderes absolutos de sua inteligência. Queria raciocinar, procurar conforto
em algu­mas frases lúcidas, tranqüilizantes, algo como "dois e dois são
quatro". Mas nada lhe acudia à mente, ficava balbuciando frases indistintas
e confusas, articulando palavras sem sentido exato. Por vezes, seus lábios
moviam-se instintivamente para proferir aquela frase que vira escrita
algures, que já tivera diante dos olhos, não sabia bem onde. E balbuciava-a
entre dentes, como se quisesse narcotizar-se, como se tentasse voltar do
caminho estreito à beira de um abismo insondável para as delícias do sono
perdido.

De súbito, ao falar mais alto, as palavras apenas balbu­ciadas penetraram,
de chofre, em seu consciente. Friedrich as conhecia agora. Ouvira-as
nitidamente. Sua própria voz cla­mava: "Sim, agora estás dentro de mim!"
Compreendeu ime­diatamente o que isso significava. Sabia que essas palavras
se referiam à estatueta de porcelana e que, nessa hora da noite, com um
rigor implacável, a profecia de Erwin estava se cum­prindo: aquela figura
grotesca que ele tivera em suas mãos e olhara com desprezo, já não estava
mais fora dele, estava den­tro! "Pois o que está fora, está dentro."

Levantou-se de um salto, como se gelo e fogo percorressem seu corpo a um só
tempo. O mundo girava vertiginosamente à sua volta. Friedrich vestiu-se às
pressas, saiu de casa e correu, envolto pela noite da cidade adormecida, à
casa de Erwin. Viu luz acesa no conhecido gabinete de estudos do velho
amigo. O portão estava aberto. Tudo parecia indicar que era esperado.
Trêmulo, empurrou a porta do gabinete de Erwin e apoiou-se, quase
desfalecido, na escrivaninha. Com o rosto iluminado pela suave luz do
abajur, Erwin sorria. Le­vantou-se de sua poltrona e, afavelmente, disse:

- Então vieste. Sim, foi bom que viesses.

- Tu... estavas à minha espera? - murmurou Friedrich.

- Espero-te, como sabes, desde o instante em que saíste de minha casa,
levando o meu pequeno presente. Aconteceu, por acaso, aquilo que te disse
aquela vez?

- Aconteceu - sussurrou Friedrich. - O teu ídolo está agora dentro de mim.
Não o suporto mais.

- Posso ajudar-te? - indagou Erwin.

- Não sei, não sei. Faz o que quiseres. Fala-me de tua ma­gia. Explica-me
como o ídolo poderá sair novamente de mim.

Erwin colocou a mão no ombro do amigo. Levou-o até uma poltrona e convidou-o
a sentar-se. Depois, dirigiu-se cari­nhosamente a Friedrich, num tom quase
paternal.

- O ídolo sairá novamente de ti. Confia em mim. Confia sobretudo em ti
mesmo. Com ele aprendeste a crer. Agora terás de aprender a amá-lo. Sim, ele
está dentro de ti mas já sabes que não morreu. Por enquanto, tampouco é algo
com vida. Circula em ti como um espectro, um fantasma sem vida própria.
Acorda-o, fala com ele, indaga-o, insufla-lhe vida. Friedrich, ele é tu
mesmo! Não o odeies, não o temas, não o tortures... como tens torturado
aquele pobre ídolo que és tu! Meu pobre amigo, como te amarguraste a ti
próprio!

- É esse o caminho da magia? - perguntou Friedrich, afundado na poltrona, a
expressão envelhecida. Sua voz era suave.

- Esse é o caminho - respondeu Erwin. - E o passo mais difícil já deste.
Poderás negar a tua própria experiência? Que o fora pode tornar-se dentro?
Tens vivido além das fron­teiras dos pares opostos. Pareceu-te um inferno?
Pois acredita, amigo, que é o céu. ~ o céu que te espera. E que nome se
poderá dar, se não o de magia, a algo que troca o fora por dentro, não por
coação, não com sofrimento, como até agora aconteceu contigo, mas
livremente, por uma imposição da nossa própria vontade? Assim poderás
invocar o teu passado e o teu futuro, pois ambos se encontram dentro de ti.
Até hoje, Friedrich, tens sido escravo do teu íntimo. Aprende a ser o seu
senhor. Isso é magia!

 "O Livro das Fábulas"  Hermann Hesse, Civilização Brasileira,  1977.