quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Barão de Itararé: Quem foi Barão, nunca perde a majestade

Barão de Itararé: Quem foi Barão, nunca perde a majestade

Memória / Por Zonacurva

 


Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual.

Neste vídeo, vamos explorar a vida e o legado de um dos maiores nomes do humor político brasileiro: o Barão de Itararé.

Conhecido por seu estilo irreverente e crítico, o Barão deixou sua marca na história do país, utilizando o humor
como uma arma para questionar o poder e expor as contradições da sociedade.

Um dos precursores da imprensa alternativa no Brasil, o Barão, criou, em 1926, o jornal humorístico A Manha (inspirado em A Manhã onde trabalhou), com o slogan “Quem não chora, não mama”. Em 1949, lança o Almanhaque, anárquico almanaque em que ele revela já na primeira edição que a vida pública do editor “é a continuidade da privada”.

Frasista dos melhores, algumas pérolas do Barão:

“De onde menos se espera, daí é que não sai nada.”

“Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer.”

“Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos.”

“Banco é uma instituição que empresta dinheiro se a gente apresentar provas suficientes de que não precisa de dinheiro.”

Ferrenho opositor de Getúlio Vargas (chegou a apoiá-lo no início), Barão conheceu o presidente ainda jovem na época do colégio e chegou a dividir a mesma pensão com o irmão de Getúlio, Benjamin, em Porto Alegre.

Barão aos 20 e alguns anos (fonte: Istoé)

Cansado de ser perseguido, colocou na porta de seu escritório uma placa com a hoje famosa frase ”Entre sem bater”. No ano passado, a história inspirou o título do livro Entre sem Bater: a Vida de Apparício Torelly, o Barão de Itararé” (Casa da Palavra), do jornalista Cláudio Figueiredo.

“Menos água no leite”

Barão foi eleito vereador da capital federal Rio de Janeiro em 1947 com o lema “Mais leite! Mais água! Mas menos água no leite!”. Apesar de sua origem aristocrática, ele submeteu-se ao escrutínio popular e recebeu 3.669 votos da plebe.

Rebelde por natureza, o Barão tornou-se o primeiro exemplar de sangue azul comunista. Ele foi o oitavo vereador mais votado do PCB (Partido Comunista do Brasil), que ocupou 18 das 50 vagas existentes. Em janeiro de 1948, os vereadores do partidão foram cassados. Barão não esmoreceu e tascou como manchete da Manha: “Um dia é da caça… os outros da cassação”.

Seu espírito crítico inspirou a criação do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararéque luta pela democratização da comunicação visando conquistar maior pluralidade e diversidade informativa e cultural no país”, segundo o site da instituição.

Fontes: livro Máximas e mínimas do Barão de Itararé, editora Record. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Soljenítsin, um escritor russo esquecido dezesseis anos após sua morte

Soljenítsin, um escritor russo esquecido dezesseis anos após sua morte


Alexander Soljenítsin, um dos mais célebres escritores do século XX e símbolo da oposição ao regime soviético, parece um pouco esquecido pelos jovens russos, dezesseis anos após sua morte.


"Soljenítsin é um dissidente, alguém que se opôs ao regime soviético, e um grande escritor", resume Sania Poliakovski, de 23 anos, estudante de Relações Internacionais em Moscou, reconhecendo, porém, nunca ter lido nada do autor, falecido em 3 de agosto de 2008.

"Falaram um pouco dele no colégio, no curso de Literatura e no curso de História, mas eu não me lembro muito", completou o jovem.

Dando a entender que os professores não se atêm muito sobre a obra de Soljenítsin, Sania comenta: "foi minha mãe que me explicou que se trata de um dos maiores escritores do século XX".

A diferença de interesse entre as gerações é flagrante. Sua mãe, Elena, lembra-se com emoção de ter descoberto um livro de Soljenítsin escondido na biblioteca de casa na época soviética.

- Fruto proibido -

"Eu era adolescente, e meus pais me explicaram que não podia dizer para ninguém que tínhamos esse livro em casa. Isso tinha o gosto do fruto proibido! Tudo isso foi um outro tempo, que meu filho nem consegue imaginar", conta ela.

Sania é um exemplo típico de uma jovem geração na Rússia que não sabe muito sobre o período soviético e ignora quase tudo de Soljenítsin, grande figura da dissidência na então URSS, Prêmio Nobel de Literatura em 1970 por seus romances e escritor de renome mundial após o lançamento de "O arquipélago Gulag" em 1973, uma obra monumental sobre os campos stalinistas.

"Em uma turma de 30 alunos, no máximo dois, ou três, leram um livro de Soljenítsin. A maioria não sabe nada dele", lamenta Alexandre Altunian, professor na Faculdade de Jornalismo da Universidade Internacional de Moscou.

Obras do escritor aparecem em programas de aulas nas escolas, mas cada professor decide quanto tempo dedicará ao autor e, na falta de tempo, seu estudo é, com frequência, limitado ao mínimo, reconhecem vários docentes do Ensino Médio.

Já aqueles que insistem nos escritos de Soljenítsin o fazem, em geral, por questões morais e políticas.

- 'Necessidade' de Soljenítsin -

"Precisamos muito ler Soljenítsin hoje, no momento em que se multiplicam as tentativas de negar as repressões stalinistas, no momento em que alguns afirmam que nada de terrível aconteceu naquela época", defende Olga Maïevskaïa, professora de Russo e de Literatura Russa.

Olga dedica várias aulas a obras literárias de Soljenítsin, como "A casa de Matriona", e a outras que tratam da temática dos campos e das repressões, como um "Um dia na vida de Ivan Denissovitch" e "O arquipélago Gulag".

"Eu cito para meus alunos as passagens mais fortes do 'Arquipélago Gulag'. O que é inacreditável, o que não contamos para eles nos cursos de História. É a História do nosso país! É preciso que eles a conheçam para que ela não se repita mais", alega Maïevskaïa.

Os esforços dessa professora vão na contracorrente da tendência dominante que vê na Rússia uma reabilitação crescente de Stalin e de todo período soviético, em paralelo a uma vontade de não insistir nas sangrentas repressões da época comunista, ou mesmo de ignorá-las.

No ano passado, uma pesquisa do instituto VTsIom sobre os "ídolos russos do século XX" colocava Alexander Soljenítsin em quinto lugar, atrás do ator e cantor Vladimir Vyssotski, do primeiro cosmonauta Yuri Gagarin, do marechal Gueorgui Jukov, herói da Segunda Guerra Mundial, e de Stalin.

O ano de 2024, dezesseis anos de aniversário de sua morte e do centenário de seu nascimento, será marcado pela organização de várias exposições e pela inauguração de uma estátua do escritor na rua que leva seu nome em Moscou.

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quarta-feira, 20 de novembro de 2024

SER GENTLEMAN NO BOTECO É ESSENCIAL - Por: Walmir Rosário

 

SER GENTLEMAN NO BOTECO É ESSENCIAL

O bom relacionamento entre os clientes d'O Berimbau 

Por Walmir Rosário*

Não há nada melhor do que acordar de bem com a vida. Numa sexta-feira, então é essencial, e afirmo isso por experiência própria e tenho me dado muito bem com esse costume. A sexta-feira, apesar de ser malvista por alguns, é o dia “ponto de corte” para iniciar um final de semana relaxando, recompondo as energias para enfrentar o batente na semana seguinte.

E é justamente às sextas-feiras que todos os órgãos do corpo humano pedem uma mudança de comportamento, o que é prenúncio de bem estar. A depender da atividade exercida, a partir do meio-dia o cidadão já pode desfrutar tranquilamente dos prazeres do fim de semana. Um almoço com amigos é um ótimo antídoto para expulsar o mal-estar e o estresse acumulado na semana.

Mas é preciso ter em mente que nem todos os locais são apropriados para o relaxamento das tensões. Também não é preciso recorrer à harmonização de ambientes com decorações milenares, o que não vem ao caso. Deve ser tudo muito simples, bastando apenas os bons fluidos emanados pelos amigos que lhe rodeiam. O chamado bom astral é tiro e queda. Soluciona todos os problemas.

E nada melhor do que um boteco onde o bate-papo corra solto, livre entre seus parceiros de mesa e os vizinhos de outras mesas. É o sinal de que você está num lugar seguro e rodeado de pessoas bem chegadas. Para completar, faça uma pesquisa anterior e se certifique se o dono do estabelecimento é um verdadeiro personal boteco.

Sim, eles existem e são figuras humanas afáveis, capazes de compreender o prazer que você busca, mesmo sendo desconhecido. Basta um olhar aprofundado, penetra no seu mundo interior e pode atender seus desejos. Como dizia o velho espanhol técnico de futebol e hoteleiro, Sotero Montero: “conheço o bom jogador pelo arriar das malas”. É assim a mística do boteco.

Mas não se incomode ou leve a sério se o dono do boteco for do tipo que se vende como um personagem grosseiro. É que ele quer ser o centro das atenções em sua casa. São nesses locais onde a variedade e qualidade das cachaças são top, as cervejas se apresentam no ponto certo de refrigeração, os tira-gostos são divinos, os clientes fidelíssimos.

Nada melhor do que chegar num determinado ambiente etílico e encontrar as mesas lotadas (o que é um bom sinal) e o seu personal boteco ir buscar outra nos fundos do bar e colocar à disposição de seu cliente. Caso não existam mesas reservas, não tem problema você será bem acomodado numa mesa já ocupada por colegas do boteco.

Para chegar a um status de alto nível, ser bem chegado, basta ter um comportamento adequado, ser gentil, ter boa conversa, ser bem informado sobre os temas em debate no local. Futebol, economia, política e notícias sociais diversas. Discuta com ênfase, sempre de acordo com padrões aceitáveis de educação e cortesia.

Como nesses locais – geralmente – antiguidade é posto, você poderá ocupar um local nos dois lados do balcão, para o desgosto do personal boteco, que aceitará sua localização inoportuna a contragosto. Essa postura, entretanto, não deverá ser adequada aos clientes novatos, ainda na fase análise, para não ser rebaixado a uma categoria inferior, a dos chatos e folgados.

Lembro bem que no Bar do Itiel, no Alto Beco do Fuxico, para se tornar um cliente premium, em sua primeira frequência deveria ser apresentado por outro de patente superior, ou sequer cruzaria os umbrais daquela porta. Após a fase de observação poderia desfrutar das honras e ser visto como um deles em qualquer situação.

Um bom cliente de boteco não deve ter receio de chegar com um violão em baixo do braço, desde que toque com maestria e não atrapalhe as conversas entre os colegas. Tenha um bom repertório, a exemplo de Caroba e Pinguim e entrem na gandaia com bons modos. Um bom frequentador de boteco é conhecido desde sua chegada, com efusivos cumprimentos.

Seja, sempre um gentleman, afinal você frequenta o seu segundo lar e terá mais liberdade do que na sua casa. É uma questão de estilo.

*Radialista, jornalista e advogado

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Na FLI, Mia Couto relembra quando fez Caetano Veloso chorar com homenagem a Jorge Amado

 

Na FLI, Mia Couto relembra quando fez Caetano Veloso chorar com homenagem a Jorge Amado


Escritor moçambicano encerra 7ª edição da Festa Literária de Ilhéus.

blogdogusmao.com.br - No encerramento da 7ª Festa Literária de Ilhéus, nesta sexta-feira (15), o escritor Mia Couto falou da influência da literatura brasileira nos países lusófonos da África, a exemplo de Moçambique, sua terra Natal. Por duas vezes, fez deferência à obra de Jorge Amado, autor que deu nome ao espaço das mesas principais da FLI. Na primeira, arrancou gargalhadas da plateia relembrando quando levou Caetano Veloso às lágrimas com homenagem ao escritor grapiúna.

No Brasil para o lançamento do seu novo livro, A cegueira do rio, editado no País pela Companhia das Letras, Mia Couto recordou o episódio em que a mesma editora reeditou toda a obra amadiana e reuniu autores para a cerimônia de lançamento, em 2008, na cidade de São Paulo. Entre os convidados, ele, Chico Buarque e Caetano Veloso.

“No avião, eu pensei: eu leio tão mal, eu com esse sotaque mais português do que brasileiro”, contou o moçambicano. Ao invés da leitura, decidiu explicar como Jorge Amado atravessou o Atlântico para ser um parteiro na África.

“Ele influenciou a criação de uma literatura que estava a querer nascer, em processo de parto, em Angola, São Tomé, Guiné Bissau, Moçambique e Cabo Verde. Então, colecionei depoimentos de escritores desses países que diziam quanto Jorge Amado os ajudou a encontrar um caminho”.

Terminada a homenagem com os relatos dos autores africanos, Mia Couto passaria o bastão para Caetano, mas o baiano demorou de aparecer. A Mia, o cerimonial disse que o cantor, compositor e escritor de Santo Amaro assistiu comovido aos depoimentos dos autores de língua portuguesa sobre Jorge Amado, desatou a chorar e precisava de um tempo para se restabelecer.

“Agora, eu posso pôr no meu CV [currículo vitae] que eu fiz chorar Caetano Veloso”, brincou Mia, dirigindo-se novamente ao público da 7ª FLI.

A CAMINHO DA LÍNGUA

No final da mesa de discussão, a mediadora Elisa Matos leu perguntas da plateia. Uma delas, do ator e poeta itabunense Jackson Costa, questionava quais aspectos da literatura de Jorge Amado mais encantavam o convidado.

Na resposta, Mia Couto destacou a capacidade do autor grapiúna de construir personagens complexos a partir de tipos populares, o que, segundo ele, foi surpreendente para gerações inteiras na África lusófona. “[A primeira questão era] como é que a gente vai fazer este pescador, esse marinheiro, essa pessoa que passa em frente da minha varanda, da minha porta, se transformar num personagem que tem todo o direito de ter uma história, e eu trago esta história para o papel. Esse era o primeiro desafio”.

O segundo, conforme o membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, era desbravar um caminho na língua herdada da colonização para reinventá-la. A inspiração estava do outro lado do Atlântico.

“A gente tinha uma outra licença para usar uma língua que foi deixada pelo colonizador, mas tinha que ser ajustada às nossas culturas. E a resposta vinha do Brasil. Vinha do Jorge Amado, de outros poetas, do Guimarães Rosa, do Manoel de Barros. Toda essa gente trouxe essa autorização, essa licença para a gente recriar o português da nossa maneira. Se eles fazem lá no Brasil, também podemos fazer nós no nosso lar”.

Com programação de 13 a 15 de novembro, a 7ª Edição da FLI (Festa Literária de Ilhéus) é uma produção da Sarça Comunicação, tem a LDM como editora oficial, parceria com a Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) e conta com o apoio da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), do Governo da Bahia, por meio da Bahia Literária, ação da Fundação Pedro Calmon/Secretaria de Cultura, da Secretaria de Educação e da Secretaria de Turismo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Em Camus, revolta é resposta para absurdo da condição humana

 Em Camus, revolta é resposta para absurdo da condição humana

           

Texto: Luiz Prado

 Qual é a origem do ser humano? Qual é a sua natureza? E o seu destino? Essas são algumas das questões com as quais se ocupa a antropologia filosófica, um campo da filosofia interessado em compreender o que é o ser humano.

Ao longo da trajetória da disciplina, três grandes tradições se destacaram na busca por essas respostas. Uma delas abordou o problema pela via histórico-social. Já outra adotou a perspectiva espiritual. Uma terceira, por sua vez, fez seu caminho a partir da interioridade, tateando soluções na individualidade do sujeito e em sua relação com o mundo.

Essa última perspectiva começou a ganhar fôlego nos debates a partir do século 20, sobretudo com o diálogo entre filósofos e as escolas da psicologia. Martin Heidegger, Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre são alguns dos nomes mais influentes dessa corrente, que prioriza reflexões a partir do que Jaspers chamou de situações-limite, como a angústia, a morte e o desespero.

Dentro desse grupo, é possível situar Albert Camus (1913-1960), escritor, filósofo, dramaturgo e jornalista franco-argelino. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1957, Camus é o autor de romances como O Estrangeiro e A Peste, ensaios como O Mito de Sísifo e o Homem Revoltado e peças de teatro como Calígula e Estado de Sítio.

No conjunto de sua obra, interligando todos os gêneros em que atuou, é possível divisar uma contribuição para a antropologia filosófica, que se relaciona à perspectiva da interioridade, mas oferece reflexões originais. Esse é o ponto de partida de Humanae Absurdum: a Imagem do Humano na Obra de Albert Camus, livro de Carlos Eduardo Bernardo que será lançado neste sábado, dia 10, às 18 horas, em live transmitida pelo perfil Albert Camus Brasil na plataforma Instagram (@albertcamusbrasil). 

Resultado da dissertação de mestrado de Bernardo,  apresentada em 2020 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva, o livro indica que a antropologia filosófica de Camus se estrutura a partir de duas linhas mestras. Uma delas é a consciência do absurdo. A outra é a revolta motivada por essa consciência.

Do início. O que seria essa absurdo? Segundo Bernardo, o absurdo em Camus corresponde à relação que o ser humano estabelece com o mundo. Para o autor franco-argelino, as pessoas são encaradas como entes de consciência, que olham para a realidade e exigem sua ordenação. Contudo, no confronto com o humano, o mundo recusa essa racionalização.

“Por mais que seja possível traduzir os fenômenos a partir de fórmulas, da lógica e através da matemática, de modo geral a natureza recusa ao humano a ordenação que a racionalidade exige”, explica Bernardo. Suas expectativas, projetos e tentativas de entendimento estão sempre se chocando com um mundo que resiste à compreensão, desvia projetos e frustra expectativas.

É esse embate entre a consciência humana e a recusa do mundo que Camus vai chamar de absurdo. “O absurdo não está nem na natureza nem no ser humano, mas nesse confronto”, afirma o pesquisador. “O absurdo é o sentimento dessa condição entre consciência e natureza.” Em outras palavras, é a constatação de que a natureza não se submete aos nossos planos e que não é possível mudar a realidade conforme todos os nossos desejos.

De acordo com Bernardo, muitos sistemas filosóficos reconhecem o absurdo, mas procuram ordená-lo para tentar resolvê-lo. Essa postura, chamada por Camus de “suicídio filosófico”, trata o absurdo como um ponto de chegada das reflexões e, na busca por solucioná-lo, acaba por trair o próprio pensamento, acolhendo respostas que escapam à consciência – como a vida eterna ou a existência de Deus.

A filosofia de Camus trata, ao contrário, o absurdo como o ponto de partida de suas considerações. A relação do ser humano com a natureza é absurda e nada pode ser feito para mudar isso. Dessa forma, reconhecendo o absurdo e a impossibilidade de dissolvê-lo, é preciso viver com ele, da melhor forma possível. É assim que Camus também apresenta seu argumento de rejeição ao suicídio. Sendo este uma tentativa de resolver o absurdo, é inválido justamente porque este é constitutivo da vida humana e, portanto, inextinguível.

E viver, apesar do absurdo, é a atitude de revolta que constitui a segunda parte da antropologia filosófica de Camus. Tendo a consciência da impossibilidade da comunhão do sujeito com o mundo, de que este atenda a seus anseios e possa se compreendido completamente, cabe ao ser humano não perder as esperanças e continuar seus esforços, mesmo diante do absurdo.

É a imagem do mito de Sísifo, que batiza uma das obras do pensador franco-argelino. O homem absurdo, aquele que tem consciência da relação absurda, age como o personagem da mitologia grega: continuamente sobe a pedra morro acima, sabendo que deverá recomeçar a tarefa e não há esperança de conclusão. Contudo, no momento em que inicia a descida montanha abaixo, esse homem consciente de seu destino vive.

“Viver é essa revolta. Fazer o que pode ser feito dentro dos limites, viver mesmo que pareça não haver razão para viver”, pontua Bernardo. “Na medida em que a pessoa toma consciência do absurdo e se revolta, ela pode ter a felicidade possível. Vivamos, apesar do absurdo.”

Uma filosofia de problemas

Para chegar a essa síntese das reflexões camusianas, Bernardo teve de enfrentar o desafio de lidar com um autor que não apresenta seu pensamento de maneira convencional à filosofia. Conforme explica, a obra de Camus não é estruturada como um grande sistema de pensamento, mas sim como um conjunto de problemas.

O pesquisador conta que filósofos sistemáticos partem de temas específicos, que se tornam princípios a partir dos quais o pensamento é estruturado, eliminando as contradições no caminho. É o caso do sistema hegeliano, por exemplo, organizado na chave da tese, antítese e síntese, que é a “dissolução do absurdo”, nas palavras de Bernardo. “O filósofo sistemático quer entregar um todo coerente, no qual a contradição é respondida”, explica.

Camus, por sua vez, parte de problemas e prioriza a maneira como as perguntas colocadas se conectam, deixando as soluções em segundo plano. “As respostas até podem aparecer, mas nunca solucionam o problema do absurdo, da contradição, porque, em um certo sentido, a filosofia problemática não é uma questão de solução, mas de proposição de questões a se tratar”, diz o pesquisador.

“A filosofia problemática mantém a tensão entre o problema e a aparente resposta”, continua Bernardo. “E isso movimenta o pensamento de pergunta em pergunta. Cada resposta gera novas perguntas e o sistema fica assim aberto e vai crescendo.”

Essa “filosofia de problemas” não foi desenvolvida por Camus em volumosos manuais da disciplina, mas se constituiu na diversidade de escritos e gêneros abordados pelo autor, incluindo não apenas seus livros, mas artigos, entrevistas e conferências. Uma produção que para alguns coloca em xeque a própria caracterização de Camus como filósofo. Não que isso tenha sido um problema para o pensador franco-argelino: ele mesmo gostava de se considerar, acima de tudo, um artista.

Para sua pesquisa, Bernardo conta que mobilizou praticamente todos os gêneros de escrita trabalhados por Camus, deixando de lado apenas os artigos jornalísticos. Dessa produção, o cerne está nos dois conjuntos de obras trípticas que o autor concebeu ainda jovem e conseguiu levar a público antes de morrer.

Esse tríptico, conforme o próprio Camus apontou no início de sua carreira, se refere à reunião de um texto ensaístico, um romance e uma peça teatral, que serviriam de complemento e ilustração mútuos. O primeiro deles trata do absurdo, correspondendo às obras O Mito de SísifoO Estrangeiro e Calígula.

“Meursault (protagonista de O Estrangeiro) é uma espécie de personagem conceitual que representa o absurdo, que vive a vida sem nenhum tipo de valor transcendente”, comenta Bernardo. “Ele tem relances de algum sentido no mundo, observa isso e pensa que é algo que lhe falta. Há uma dificuldade de valoração de sentido.”

O segundo tríptico, ligado à revolta, é composto com o ensaio O Homem Revoltado, o romance A Peste e a peça Os Justos, podendo ser encaixada aí também Estado de Sítio, versão teatral de A Peste. “A Peste reverbera uma frase que Camus escreve em O Homem Revoltado: nós nos revoltamos, logo existimos”, destaca o pesquisador. “Ao fazer isso, ele aponta nosso pensamento para as personagens sitiadas e para a revolta contra a condição absurda da própria morte.”

Camus pretendia ainda compor um terceiro tríptico, que seria dedicado ao amor, mas seu falecimento precoce, em decorrência de um acidente de carro, deixou apenas a obra inacabada O Primeiro Homem. Bernardo revela ainda que em algum momento esteve nos planos do autor escrever um tratado filosófico, mas a ideia não se concretizou.

“Acredito que o abandono dessa tentativa de escrever um grande sistema filosófico se deu porque Camus entrou em um período de desconfiança aguda acerca da possibilidade de a razão conceber um sistema capaz de abarcar a realidade”, pondera o pesquisador.

Recusa do existencialismo

Bernardo acredita que essa desconfiança marca também um dos motivos de Camus rejeitar a associação com o existencialismo, corrente filosófica com o qual teve aproximações no início de suas atividades, mas que depois passou a criticar. As divergências com Jean-Paul Sartre compõem um dos capítulos dessa querela que o pesquisador relembra.

Segundo Bernardo, tanto Camus quanto Sartre lidam com problemas semelhantes – o desespero, o absurdo, a questão da morte como situação-limite. Contudo, a compreensão do humano é muito diferente em suas obras. Sartre, em virtude de sua relação com a visão socialista, prioriza a ideia de revolução. Já Camus, que rompeu com o Partido Comunista Francês, via a revolução apenas como uma virada na qual os oprimidos se tornavam os novos opressores. Era a época na qual o regime stalinista surgia como materialidade e referência do socialismo – para críticos e entusiastas. Por isso, a opção pela revolta. “Na perspectiva de Camus, os revoltados se unem na solidariedade de quem se reconhece como oprimido”, assinala o pesquisador.

Assim, compartilhando autores de referência como Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Fiódor Dostoiévski e Franz Kafka, travando batalhas com problemas filosóficos semelhantes e chegando ambos à ideia de absurdo, Camus e Sartre estavam ao mesmo tempo muito próximos e apartados, reflete Bernardo.

“Na perspectiva do existencialismo sartreano, o absurdo é um ponto de chegada da filosofia e devemos achar alternativas políticas para lidar com ele. Já Camus entendia o absurdo como ponto de partida. Para Sartre, como a história é feita pelos humanos, pode ser mudada pelos humanos, uma ideia ainda ligada ao Iluminismo, a história como ápice e solução do problema. Camus discorda.”

O teor de suas ideias e o rompimento com Sartre custaria a Camus um lugar quase marginal na filosofia, na análise de Bernardo. Um destino injusto, mas impulso para a pesquisa que resultou no livro agora publicado. “Acredito que a grandeza de seu pensamento não é valorizada”, comenta. “Essa visão camusiana de um pensamento comedido, que busca a justa medida, está em falta no mundo contemporâneo. É preciso viver na medida, sair dos extremos que acabam levando a posições muito beligerantes. Creio que o jeito de pensar de Camus é benéfico para podermos nos conciliar mais”, finaliza Bernardo.

"A filosofia antropológica de Camus é uma forma de humanismo. Um humanismo não racionalista, calcado na concepção trágica do fenômeno humano, herdada dos gregos e refundida na sensibilidade existencial que rejeita quaisquer formas de escamotear a complexidade da condição humana."

Carlos Eduardo Bernardo em Humanae Absurdum

Humanae Absurdum: A Imagem do Humano na Obra de Albert Camus, de Carlos Eduardo Bernardo, Editora Appris, 129 páginas, R$ 44,00.

O livro será lançado em live neste sábado, dia 10, às 18 horas, no perfil Albert Camus Brasil da plataforma Instagram (@albertcamusbrasil).