Em Camus, revolta é resposta para absurdo da condição humana
Texto: Luiz
Prado
Ao longo da trajetória da disciplina, três grandes tradições se
destacaram na busca por essas respostas. Uma delas abordou o problema pela via
histórico-social. Já outra adotou a perspectiva espiritual. Uma terceira, por
sua vez, fez seu caminho a partir da interioridade, tateando soluções na
individualidade do sujeito e em sua relação com o mundo.
Essa última perspectiva começou a ganhar fôlego nos debates a partir do
século 20, sobretudo com o diálogo entre filósofos e as escolas da psicologia.
Martin Heidegger, Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre são alguns dos nomes mais
influentes dessa corrente, que prioriza reflexões a partir do que Jaspers
chamou de situações-limite, como a angústia, a morte e o desespero.
Dentro desse grupo, é possível situar Albert Camus (1913-1960),
escritor, filósofo, dramaturgo e jornalista franco-argelino. Ganhador do Prêmio
Nobel de Literatura em 1957, Camus é o autor de romances como O Estrangeiro e A Peste, ensaios
como O Mito de Sísifo e o Homem Revoltado e peças de teatro como Calígula e Estado de Sítio.
No conjunto de sua obra, interligando todos os gêneros em que atuou, é
possível divisar uma contribuição para a antropologia filosófica, que se
relaciona à perspectiva da interioridade, mas oferece reflexões originais. Esse
é o ponto de partida de Humanae Absurdum: a Imagem do
Humano na Obra de Albert Camus, livro de Carlos Eduardo Bernardo que
será lançado neste sábado, dia 10, às 18 horas, em live transmitida pelo perfil
Albert Camus Brasil na plataforma Instagram (@albertcamusbrasil).
Resultado da dissertação de mestrado de Bernardo, apresentada em
2020 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob
orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva, o livro indica que a
antropologia filosófica de Camus se estrutura a partir de duas linhas mestras.
Uma delas é a consciência do absurdo. A outra é a revolta motivada por essa
consciência.
Do início. O que seria essa absurdo? Segundo Bernardo, o absurdo em
Camus corresponde à relação que o ser humano estabelece com o mundo. Para o
autor franco-argelino, as pessoas são encaradas como entes de consciência, que
olham para a realidade e exigem sua ordenação. Contudo, no confronto com o humano,
o mundo recusa essa racionalização.
“Por mais que seja possível traduzir os fenômenos a partir de fórmulas,
da lógica e através da matemática, de modo geral a natureza recusa ao humano a
ordenação que a racionalidade exige”, explica Bernardo. Suas expectativas,
projetos e tentativas de entendimento estão sempre se chocando com um mundo que
resiste à compreensão, desvia projetos e frustra expectativas.
É esse embate entre a consciência humana e a recusa do mundo que Camus
vai chamar de absurdo. “O absurdo não está nem na natureza nem no ser humano,
mas nesse confronto”, afirma o pesquisador. “O absurdo é o sentimento dessa
condição entre consciência e natureza.” Em outras palavras, é a constatação de
que a natureza não se submete aos nossos planos e que não é possível mudar a
realidade conforme todos os nossos desejos.
De acordo com Bernardo, muitos sistemas filosóficos reconhecem o
absurdo, mas procuram ordená-lo para tentar resolvê-lo. Essa postura, chamada
por Camus de “suicídio filosófico”, trata o absurdo como um ponto de chegada
das reflexões e, na busca por solucioná-lo, acaba por trair o próprio
pensamento, acolhendo respostas que escapam à consciência – como a vida eterna
ou a existência de Deus.
A filosofia de Camus trata, ao contrário, o absurdo como o ponto de
partida de suas considerações. A relação do ser humano com a natureza é absurda
e nada pode ser feito para mudar isso. Dessa forma, reconhecendo o absurdo e a
impossibilidade de dissolvê-lo, é preciso viver com ele, da melhor forma possível.
É assim que Camus também apresenta seu argumento de rejeição ao suicídio. Sendo
este uma tentativa de resolver o absurdo, é inválido justamente porque este é
constitutivo da vida humana e, portanto, inextinguível.
E viver, apesar do absurdo, é a atitude de revolta que constitui a
segunda parte da antropologia filosófica de Camus. Tendo a consciência da
impossibilidade da comunhão do sujeito com o mundo, de que este atenda a seus
anseios e possa se compreendido completamente, cabe ao ser humano não perder as
esperanças e continuar seus esforços, mesmo diante do absurdo.
É a imagem do mito de Sísifo, que batiza uma das obras do pensador
franco-argelino. O homem absurdo, aquele que tem consciência da relação
absurda, age como o personagem da mitologia grega: continuamente sobe a pedra
morro acima, sabendo que deverá recomeçar a tarefa e não há esperança de
conclusão. Contudo, no momento em que inicia a descida montanha abaixo, esse
homem consciente de seu destino vive.
“Viver é essa revolta. Fazer o que pode ser feito dentro dos limites,
viver mesmo que pareça não haver razão para viver”, pontua Bernardo. “Na medida
em que a pessoa toma consciência do absurdo e se revolta, ela pode ter a
felicidade possível. Vivamos, apesar do absurdo.”
Uma filosofia de problemas
Para chegar a essa síntese das reflexões camusianas, Bernardo teve de
enfrentar o desafio de lidar com um autor que não apresenta seu pensamento de
maneira convencional à filosofia. Conforme explica, a obra de Camus não é
estruturada como um grande sistema de pensamento, mas sim como um conjunto de
problemas.
O pesquisador conta que filósofos sistemáticos partem de temas
específicos, que se tornam princípios a partir dos quais o pensamento é
estruturado, eliminando as contradições no caminho. É o caso do sistema
hegeliano, por exemplo, organizado na chave da tese, antítese e síntese, que é
a “dissolução do absurdo”, nas palavras de Bernardo. “O filósofo sistemático
quer entregar um todo coerente, no qual a contradição é respondida”, explica.
Camus, por sua vez, parte de problemas e prioriza a maneira como as
perguntas colocadas se conectam, deixando as soluções em segundo plano. “As
respostas até podem aparecer, mas nunca solucionam o problema do absurdo, da
contradição, porque, em um certo sentido, a filosofia problemática não é uma
questão de solução, mas de proposição de questões a se tratar”, diz o
pesquisador.
“A filosofia problemática mantém a tensão entre o problema e a aparente
resposta”, continua Bernardo. “E isso movimenta o pensamento de pergunta em
pergunta. Cada resposta gera novas perguntas e o sistema fica assim aberto e
vai crescendo.”
Essa “filosofia de problemas” não foi desenvolvida por Camus em
volumosos manuais da disciplina, mas se constituiu na diversidade de escritos e
gêneros abordados pelo autor, incluindo não apenas seus livros, mas artigos,
entrevistas e conferências. Uma produção que para alguns coloca em xeque a
própria caracterização de Camus como filósofo. Não que isso tenha sido um
problema para o pensador franco-argelino: ele mesmo gostava de se considerar,
acima de tudo, um artista.
Para sua pesquisa, Bernardo conta que mobilizou praticamente todos os
gêneros de escrita trabalhados por Camus, deixando de lado apenas os artigos
jornalísticos. Dessa produção, o cerne está nos dois conjuntos de obras
trípticas que o autor concebeu ainda jovem e conseguiu levar a público antes de
morrer.
Esse tríptico, conforme o próprio Camus apontou no início de sua
carreira, se refere à reunião de um texto ensaístico, um romance e uma peça
teatral, que serviriam de complemento e ilustração mútuos. O primeiro deles
trata do absurdo, correspondendo às obras O Mito de Sísifo, O Estrangeiro e Calígula.
“Meursault (protagonista de O Estrangeiro) é uma
espécie de personagem conceitual que representa o absurdo, que vive a vida sem
nenhum tipo de valor transcendente”, comenta Bernardo. “Ele tem relances de
algum sentido no mundo, observa isso e pensa que é algo que lhe falta. Há uma
dificuldade de valoração de sentido.”
O segundo tríptico, ligado à revolta, é composto com o ensaio O Homem Revoltado, o romance A Peste e a peça Os Justos, podendo
ser encaixada aí também Estado de Sítio,
versão teatral de A Peste. “A Peste reverbera uma frase que Camus escreve
em O Homem Revoltado: nós nos revoltamos, logo existimos”,
destaca o pesquisador. “Ao fazer isso, ele aponta nosso pensamento para as
personagens sitiadas e para a revolta contra a condição absurda da própria
morte.”
Camus pretendia ainda compor um terceiro tríptico, que seria dedicado ao
amor, mas seu falecimento precoce, em decorrência de um acidente de carro,
deixou apenas a obra inacabada O Primeiro Homem.
Bernardo revela ainda que em algum momento esteve nos planos do autor escrever
um tratado filosófico, mas a ideia não se concretizou.
“Acredito que o abandono dessa tentativa de escrever um grande sistema
filosófico se deu porque Camus entrou em um período de desconfiança aguda
acerca da possibilidade de a razão conceber um sistema capaz de abarcar a
realidade”, pondera o pesquisador.
Recusa do existencialismo
Bernardo acredita que essa desconfiança
marca também um dos motivos de Camus rejeitar a associação com o
existencialismo, corrente filosófica com o qual teve aproximações no início de
suas atividades, mas que depois passou a criticar. As divergências com
Jean-Paul Sartre compõem um dos capítulos dessa querela que o pesquisador
relembra.
Segundo Bernardo, tanto Camus quanto
Sartre lidam com problemas semelhantes – o desespero, o absurdo, a questão da
morte como situação-limite. Contudo, a compreensão do humano é muito diferente
em suas obras. Sartre, em virtude de sua relação com a visão socialista,
prioriza a ideia de revolução. Já Camus, que rompeu com o Partido Comunista
Francês, via a revolução apenas como uma virada na qual os oprimidos se
tornavam os novos opressores. Era a época na qual o regime stalinista surgia
como materialidade e referência do socialismo – para críticos e entusiastas.
Por isso, a opção pela revolta. “Na perspectiva de Camus, os revoltados se unem
na solidariedade de quem se reconhece como oprimido”, assinala o pesquisador.
Assim, compartilhando autores de
referência como Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Fiódor Dostoiévski e
Franz Kafka, travando batalhas com problemas filosóficos semelhantes e chegando
ambos à ideia de absurdo, Camus e Sartre estavam ao mesmo tempo muito próximos
e apartados, reflete Bernardo.
“Na perspectiva do existencialismo
sartreano, o absurdo é um ponto de chegada da filosofia e devemos achar
alternativas políticas para lidar com ele. Já Camus entendia o absurdo como
ponto de partida. Para Sartre, como a história é feita pelos humanos, pode ser
mudada pelos humanos, uma ideia ainda ligada ao Iluminismo, a história como
ápice e solução do problema. Camus discorda.”
O teor de suas ideias e o rompimento
com Sartre custaria a Camus um lugar quase marginal na filosofia, na análise de
Bernardo. Um destino injusto, mas impulso para a pesquisa que resultou no livro
agora publicado. “Acredito que a grandeza de seu pensamento não é valorizada”,
comenta. “Essa visão camusiana de um pensamento comedido, que busca a justa
medida, está em falta no mundo contemporâneo. É preciso viver na medida, sair
dos extremos que acabam levando a posições muito beligerantes. Creio que o
jeito de pensar de Camus é benéfico para podermos nos conciliar mais”, finaliza
Bernardo.
"A filosofia antropológica de Camus é uma forma de humanismo. Um
humanismo não racionalista, calcado na concepção trágica do fenômeno humano,
herdada dos gregos e refundida na sensibilidade existencial que rejeita
quaisquer formas de escamotear a complexidade da condição humana."
Carlos
Eduardo Bernardo em Humanae Absurdum
Humanae Absurdum: A Imagem do
Humano na Obra de Albert Camus, de Carlos Eduardo
Bernardo, Editora Appris, 129 páginas, R$ 44,00.
O livro será lançado em live neste sábado, dia 10, às 18 horas, no
perfil Albert Camus Brasil da plataforma Instagram (@albertcamusbrasil).