“Manhã de Retribuição”
Uma
crônica sobre justiça, memória e o preço das escolhas políticas que marcaram o
Brasil.
Lisdeili Nobre
Acordamos
com o plantão jornalístico cortando a programação matinal, aquele aviso sonoro
na TV que o Brasil já aprendeu a temer. Mas, desta vez, não era tragédia
natural, enchente, massacre ou crise internacional.
Era o que muitos esperavam há anos: a prisão do ex-presidente Jair
Messias Bolsonaro.
Para
uma parcela do país, ele não é um político — é uma espécie de espelho
emocional. Não importa o que fez, importa o que representa. E símbolos, quando
se instalam na cabeça das pessoas, viram muros contra qualquer realidade.
Para
outra parcela, a notícia não traz euforia. Para alguns, traz memória.
A lembrança da tentativa grotesca e violenta de golpe, que expôs ao mundo o
quanto ainda somos jovens demais como democracia e tolerantes demais com
aventureiros autoritários.
Eu,
ao ver a imagem da prisão, senti algo simples e frio: retribuição.
Não moral, não pessoal — jurídica.
A retribuição que o Direito Penal prevê quando alguém ultrapassa limites
institucionais que deveriam ser intocáveis.
Logo
depois, nos mesmos noticiários, os dados do IBGE surgiram como pano de fundo da
história recente:
700
mil mortes por COVID-19
Esses
números não são responsabilidade direta do ex-presidente.
Mas a memória coletiva que carregam é inseparável da condução federal da
pandemia. Porque ele pode não ter criado o vírus — mas escolheu como
enfrentá-lo:
•
negando vacina;
• zombando de mortos, enfermos nos hospitais e lares brasileiros;
• incentivando remédios sem comprovação;
• sabotando a ciência brasileira;
• minando a confiança pública em medidas básicas de proteção;
• transformando dor em oportunidade política;
• confundindo a população com versões paralelas da realidade.
O
país ficou sem oxigênio enquanto ele fazia piadas. Faltaram leitos. Faltaram
local para enterros. Faltou governo.
E
o resultado não foi apenas estatístico: foram pessoas reais — amigos,
familiares, vizinhos, colegas — que morreram sufocados, sozinhos, enquanto o
líder da nação dizia que era “mimimi”, uma gripezinha.
Como
se não bastasse, seu discurso inflamado espalhou violência, legitimou
agressões, fortaleceu machismos e ampliou riscos para mulheres que já viviam
cercadas de perigos.
O reflexo disso está nas delegacias, nos índices de feminicídio, na
normalização da brutalidade cotidiana. Por tudo isso, a prisão de hoje tem peso
histórico.
Não
resolve tudo.
Não desfaz tragédias.
Não devolve ninguém.
Mas coloca um freio.
Mostra
que nem mesmo o topo do poder está blindado quando a democracia é atacada.
Não
é espetáculo.
Não é revanche.
É necessidade institucional.
Nesta
manhã de plantão jornalístico, o Brasil acordou com a rara sensação de que a
Justiça, mesmo lenta, às vezes se lembra de caminhar.
E
isso — só isso — já marca um ponto de virada na história recente do país.
Lisdeili Nobre
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