quinta-feira, 16 de outubro de 2025

A Cronica de Walmir Rosário, Direto de Canavieiras

 

AS PERIPÉCIAS DOS ESCOTEIROS CANAVIEIRENSES

Waldir de Roxinho e à direita o colega de viagem Trajano
no Mac Vita, no autógrafo do livro d'O Berimbau

Por Walmir Rosário*

Em 1958 Canavieiras pouco tinha a oferecer aos seus moradores, do ponto de vista exterior. Embora o cinema mostrasse o desenvolvimento ao redor do mundo, suas novidades, por aqui a vida girava em torno da economia cacaueira, das chegadas e partidas dos aviões de carreira, do movimento de navios nos portos, o futebol, a vida nas boates e bares.

De Canavieiras era possível, sim, “enxergar” o mundo através das emissoras de rádio do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, jornais, revistas, e pelo testemunho dos canavieirenses mais abastados que estudavam fora. Em 1958 a grande atração era a participação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, a ser disputada na Suécia, e a remota chance de ser campeã.

Em dia de sábado na Confraria d'O Berimbau
Mas o sonho de conhecer outras terras, a exemplo do Rio de Janeiro, não saía da cabeça dos mais jovens, a maioria sem condições financeiras para realizar um passeio dessa magnitude. Flanar por Copacabana, assistir aos jogos dos seus times no Maracanã, frequentar a capital federal do Brasil representava a glória para qualquer ser vivente.

Em abril de 1958 um grupo de 10 escoteiros resolveu transformar esse sonho em realidade. Nenhum deles possuía experiência em uma viagem dessa magnitude, mas não faltavam a coragem e a convicção do aprendizado de anos no Escotismo. E assim os garotos de 16 a 18 anos iniciaram o planejamento da viagem, com a aquiescência dos pais. Entretanto, um deles não voltaria.

Com o dinheiro curto, os pupilos de Robert Baden-Power embarcaram num avião da Cruzeiro do Sul na pequena viagem entre Canavieiras e Belmonte. Daí pra frente seria o que Deus quiser, sempre focados nos ensinamentos do Escotismo. E enfrentar a segunda parte da viagem não seria moleza para eles, pois o percurso de Belmonte a Vitória, no Espírito Santo, custou 21 dias de viagem, cumpridos em jornadas a pé.

E o grupo formado por Walter e Trajano Barbosa, Coló Melo, Raimundo Oliveira (depois tenente Raimundo), Orleans da Hora, Dinael Santos, Edson Dedo, Waldyr de Roxinho, Everaldino Piloto e José Araújo empreenderam o trajeto, sob o comando de Henrique Ciência. Nesse segundo trecho eles conheceram, de verdade, o valor do slogan do escotismo: “Sempre alerta”.

No percurso, privilegiaram a caminhada nos trechos de praias, superando as dificuldades que surgiam com frequência, atravessando a pé ou a nado os ribeirões e bocas de barras. Também tiveram que usar de artifícios para caminhar no meio de florestas, evitando as armadilhas naturais e os animais, principalmente as cobras.

Waldir e Bené no autógrafo do livro sobre
Tyrone Perrucho, e Valdemar Broxinha

Quando encontravam um sítio conversavam com os moradores sobre o melhor caminho que deveriam tomar e eram avisados sobre em que trechos poderiam parar para descansar e dormir. Num desses locais em que passaram a noite, como sempre, armaram e tocaram fogo numa grande fogueira para espantar as onças, cujas pegadas e os esturros foram vistas e escutados bem próximas.

Em um costado do mar foram obrigados a acelerar o passo para conseguir vencer o percurso enquanto a maré estava em baixa, do contrário poderiam ser tragados pelas grandes ondas. Cansados, já sem quase nenhum recurso financeiro e víveres, finalmente chegaram a Vitória, no Espírito Santo, e tiveram a ideia de se apresentarem ao prefeito.

A aventura dos escoteiros canavieirenses emocionou o prefeito, que os ajudou com alimentação e passagens de trem para o Rio de Janeiro. Na Guanabara se apresentaram na sede dos Escoteiros do Mar, foram recepcionados pelo General canavieirense Asclepíades Santos, participaram de uma feijoada, e no Maracanã assistiram ao jogo Brasil e Portugal, com a presença de Pelé e Garrincha, dois novatos na Seleção Brasileira.

Missão cumprida, 21 dias após embarcam no navio Comandante Capela com destino a Ilhéus, numa viagem de seis dias. Em seguida, viajaram na carroceria de um caminhão até Camacan, e a partir daí uma picape os levou a Canavieiras. Entretanto, dos 10 que empreenderam a viagem de ao Rio de Janeiro, um deles não voltou, continuou na Guanabara. Na bagagem, nem uma foto, selfie, ou vídeo, só as lembranças contadas.

É que Waldir Souza, o Waldir de Roxinho, resolveu se engajar na Marinha do Brasil, com a permissão de seu pai. Músico, saxofonista, foi incorporado à Banda dos Fuzileiros Navais, agora como clarinetista, conforme as recomendações do maestro regente. E Waldir faz carreira como militar e músico, viajando, conhecendo o mundo, até sua baixa como oficial.

No Rio de Janeiro constitui família, criou os filhos, depois formados e com carreiras pós-tituladas, prontos para enfrentarem a vida. Reformado na vida militar, eis que Waldir retorna a Canavieiras, onde retoma a vida civil, suas obrigações familiares. Nas horas de folga, se encontra com os amigos no Bar Laranjeiras, no qual possui cadeira cativa, e em sábados pretéritos, quando ainda existia a Confraria d’O Berimbau, como confrade batia o ponto.

Waldir na reabertura d'O Berimbau
Esse é o feito de quem determinou e direcionou sua vida no propósito de seguir carreira, transitar na sociedade com distinção, fazer amigos por onde passou e cuidar bem de suas obrigações. E nesta quarta-feira – 15 de outubro de 2025 – Waldir de Roxinho alcança os 89 anos de vida, sempre rodeado pelos amigos: os que aqui deixou em 1958, e os que construiu ao longos desses anos.

Parabéns, Waldir!


*Radialista, jornalista e advogado


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Os 37 anos da Constituição de 1988 e a retomada da cidadania

Os 37 anos da Constituição de 1988 e a retomada da cidadania

 

Com toda razão, Ulisses Guimarães referiu-se à Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988 (que ora completa 37 anos), como a Constituição Cidadã, que veio para proteger o povo pobre e sofrido do Brasil, massacrado, humilhado e maltratado desde o início da colonização portuguesa.

Como dito por seu relator geral, Bernardo Cabral, os constituintes de 1987/1988 tiveram o cuidado de colocar na parte inicial da Carta Política os princípios fundamentais da República e da garantia dos direitos do homem, inseridos nos artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º, em respeito ao povo brasileiro, anteriormente sempre colocado na parte final das Constituições.

A Constituição redigida por Ulisses Guimarães, Bernardo Cabral, Luiz Inácio Lula da Silva, Benedita da Silva, Florestan Fernandes, entre tantos outros constituintes, é aquela que veio para reparar o autoritarismo; e, mais do que isto, para dar cidadania a quem jamais a teve, aos que sempre lutaram para sobreviver com um mínimo de dignidade.

É a Constituição de 1988, que, desde o seu preâmbulo, manifesta preocupação em assegurar “o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Nossa Carta Política também estabelece como princípios fundamentais da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (artigo 1º), constando entre seus objetivos (artigo 3º) “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos”.O texto constitucional é tão avançado e preocupado com a existência digna do ser humano, que fez questão de ressaltar, no seu artigo 170, que a ordem econômica é fundada na “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”; significa dizer que, de acordo com nossa carta política, o trabalho antecede o capital e está erigido como um valor a ser defendido diante de qualquer outra força econômica.Trata-se de uma constituição avançadíssima para seu tempo (ainda que mutilada por mais de centro e trinta emendas; muitas, a meu sentir, inconstitucionais), que ainda se mantém de pé com seus princípios e direitos fundamentais. Mas é, também, uma Constituição frequentemente sabotada pela classe dominante brasileira, que, antes mesmo de sua promulgação, procurou esvaziá-la, como aconteceu no dia 27 de julho de 1988, quando o ex-presidente José Sarney, com certo tom de ameaça, dirigiu-se aos constituintes, em cadeia nacional de rádio e televisão, para afirmar, ao longo de vinte e oito minutos, que o texto constitucional que estava para ser aprovado “deixaria o país ingovernável”.

Na verdade, a fala de José Sarney, na ocasião, reproduzia os interesses mais atrasados da classe dominante brasileira, que achava que o reconhecimento dos amplos direitos sociais inseridos na Constituição brasileira de 1988 teria um impacto significativo sobre o orçamento geral da União, desde sempre controlado para satisfazer apenas os interesses dos muito ricos e deixando os pobres entregues à própria sorte. É importante lembrar, por exemplo, que, antes da Constituição de 1988 não existia o sistema único de saúde com atendimento universal para todos os brasileiros.

E o presidente Sarney, com o velho e surrado argumento, afirmava que o novo texto constitucional representaria um desencorajamento à produção, induziria o país ao “ócio à produtividade” e “o governo não teria dinheiro para pagar os benefícios sociais aprovados pelo congresso constituinte”; ou seja, a mesma conversa fiada empregada até hoje contra a classe trabalhadora, para justificar o desvio dos recursos arrecadados por meio dos tributos (que recaem sobre o povo) e transferi-los para os muito ricos, que, além de não pagarem efetivamente impostos, vivem da renda proporcionada por taxas de juros exorbitantes, que ampliam cada vez mais o endividamento público.

Naquela oportunidade, Luís Inácio Lula da Silva, então deputado constituinte e líder do Partido dos Trabalhadores na Assembleia Constituinte, assim se manifestou: “A fala do presidente causou três espantos: 1) ver um presidente assustar a nação com o fantasma da ingovernabilidade usando informações imprecisas; 2) ver um presidente reclamar contra liberalidades da constituinte, quando seus líderes não ficaram calados, como votaram a favor dos dispositivos citados; 3) ver um presidente da República, supostamente guardião da independência e da economia do país, ocultar em seu pronunciamento que está forçando a eliminação da propriedade da União sobre o subsolo, a volta concreta do contrato de risco e a preferência à empresa nacional ao Estado” (Folha de São Paulo, 27/07/1988, p. A6).

Infelizmente, a Constituição promulgada em 05/10/1988 não pôde, até os dias de hoje, ser executada na sua plenitude, pois para isso era necessária a eleição imediata de um presidente comprometido com seus ideais avançados, o que, infelizmente, não ocorreu na eleição presidencial de 1989, quando, em decorrência das manipulações típicas da atrasada classe dominante, controladora do país desde a sua fundação, o eleito foi Collor de Mello.

Posteriormente, a mesma classe dominante manobrou para eleger FHC, que retribuiu o favor submetendo incondicionalmente o país à cartilha do neoliberalismo e enfraquecendo o conceito de soberania nacional, por meio de suas emendas constitucionais, aprovadas a partir de 1995, que decretaram o fim do conceito de empresa nacional, acabaram com a proteção da navegação por cabotagem de bandeira nacional, extinguiram o monopólio das telecomunicações e do petróleo (até então detido exclusivamente pela Petrobras) e intensificaram as privatizações do patrimônio público, que extinguiram incontáveis postos de trabalho.

A Constituição de 1988 merecia a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 1989, não apenas para consolidar a redemocratização mas também para levar adiante a implementação dos seus objetivos fundamentais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Por isso, mais do nunca, é necessário que o presidente Lula seja reeleito em 2026, preferencialmente no primeiro turno. Pois assim, com sua imensa experiência política e crescente maturidade, ele terá a legitimidade para promover os enfrentamentos com a classe dominante do país e retomar os ideais originários da Constituição de 1988. Deste modo, teremos uma base sólida para promover os referendos (conforme previsto no artigo 14 da Constituição) para revogação de todas as mudanças equivocadas impostas ao país, principalmente depois do golpe de 2016, e dar início, finalmente, ao processo da justa distribuição da riqueza produzida por toda a sociedade, como pretendiam os constituintes de 1987/1988, a fim de construir um país efetivamente soberano e desenvolvido para todos os brasileiros.

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/os-37-anos-da-constituicao-de-1988-e-a-retomada-da-cidadania

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sábado, 4 de outubro de 2025

A SAGA DOS SÍRIOS E LIBANESES NO SUDESTE DA BAHIA

 

A SAGA DOS SÍRIOS E LIBANESES NO SUDESTE DA BAHIA

Wilson Midlej conta em livro a história da família no Brasil

 Por Walmir Rosário*

Os árabes – sírios e libaneses –, incluindo aí os povos egípcios e turcos, quando se encontram à mesa é uma festa gostosa sem data para acabar. Em meio às delícias de comer e beber, muitas histórias. E não falam somente das saudades sentidas da terrinha do outro lado do Oceano Atlântico, mas da felicidade que sentem em viverem no Brasil, sobretudo, de serem brasileiros.

Imaginem o sentimento do jornalista, escritor e advogado Wilson Midlej em contar as muitas histórias de sua família, que por motivos diversos, fincaram moradia permanente no Brasil, mais especificamente no Sudeste da Bahia. Mas como eles não vivem sozinhos, os “brimos” ganharam generosos espaços no livro A Saga dos Sírios e Libaneses no Sudoeste da Bahia.

Se mais o irrequieto Wilson Midlej não contou foi motivado pela falta de informações verídicas, confirmadas por meio de documentos, ou viva voz dos que aqui aportaram e adotados num país distante, diferente em costumes e clima. Enfrentaram um mundo novo sem, sequer, falar uma palavra do nosso português, embora conhecessem o francês, inglês, árabe e outros idiomas.

E o nosso Autor não fez por menos e convidou o ilustre e festejado intelectual Sérgio Mattos, jornalista, escritor, poeta, mestre e doutor em comunicação, com assento em academias tantas. Do ofício conhece sobejamente, já que autor de 54 livros entre técnicos e ficção. E o livro sobre nossos amigos do Oriente Médio ganhou um luxuoso prefácio.

Sobre Wilson Midlej, Sérgio Mattos discorreu: “O jornalista, contista, romancista, historiador e empreendedor é um cidadão que não desiste de seus projetos e quando começa um novo desafio só quando termina a obra é que se dá por satisfeito. Dono de uma grande simpatia pessoal, com a qual soube construir um grupo de amigos diletos, além de determinação na realização de sonhos, neste livro, o quarto de sua autoria, ele assumiu o compromisso pessoal de resgatar a memória de algumas famílias de origem sírio-libaneses que se radicaram na Bahia, mais precisamente na região cacaueira”.

E no livro, tecnicamente elaborado e editado, o leitor viajará por terras inóspitas, mas vividas com intensidade dos que vieram para construir uma vida diferente, diria até que jamais imaginada. E souberam encarar com muita sabedoria, perseverança e fé em Deus, já que de maioria cristã Maronita.

E eram duas jornadas: a primeira com início no Oriente Médio, passando pela Europa e cruzando o Atlântico. A segunda, bem real, começava ao desembarcar do navio, em Santos, Rio de Janeiro ou Salvador. Passavam por exames de saúde, eram inquiridos sobre o que fariam, muitos trocavam seus nomes e eram orientados sobre como encontrarem seus familiares. Outros, nem tanto.

E Wilson Midlej nos serve de cicerone nas viagens empreendidas pelos parentes e “brimos” para encontrar as terras do cacau, numa viagem nos navios até Ilhéus, onde muitos moravam. Muitos deles mascateando embreados na Mata Atlântica que protegia as plantações de cacau; outros vivendo do comércio e serviços na cidade grande.

Os recém-chegados encontravam todo o apoio dos parentes ambientados e trabalhavam com afinco para fazer fortuna. Ilhéus e seus distritos prósperos, como Pirangy (hoje Itajuípe), Tabocas (atual Itabuna), Rapatição e Alfredo Martins (ainda Camamu), posterior distrito de Rio Novo (quando passou para Jequié), e em 1933 passou a ser chamado de Ipiaú, já elevado a município.

De mascates passaram a empregados e donos de lojas, e a cada dinheiro economizado passavam a investir em fazendas de cacau e pecuária. Influenciaram na cultura dessas cidades, na culinária, e mesmo quando faltavam ingredientes a sabedoria das senhoras era pródiga em substituí-los por produtos da agricultura brasileira.

Dentre os Midlej merecem destaque Elias Abraham e Vitória Koury, ele nascido em Kaituly, no Líbano, e ela egípcia. Conheceram-se em Alexandria (Egito). Já casados e com uma filha, Reymonde, e mais uma gravidez, resolveram se mudar para o Brasil, onde já moravam três irmãs, um irmão e uns primos de Elias. Em Salvador, desembarcaram na Ponta de Humaitá, em Montserrat.

E os então futuros avós do Autor, Wilson Midlej, rumaram para Ilhéus, se estabelecendo no distrito do Rio do Braço, empreendendo numa casa comercial, levada pela enchente de 1914. Com o dinheiro que restava se mudam para Ilhéus, e em seguida para Rio Novo. À época, a família contava com cinco filhos: Raymonde, Angel, Frederico, Jancy e Beatriz. Em seguida vieram Ibrahim, Vivaldo, Floripes e Fauze.

Além dos Midlej, o Autor também esmiúça as famílias Maron, Thiara, Hagge, Salomão, sendo que algumas delas se entrelaçam pelos municípios do Sul e Sudeste da Bahia, com destaque para Ilhéus, Itabuna, Ipiaú, Jequié, Itajuípe, Ibirataia, dentre outros. O livro é um romance histórico que nos prende na leitura, com surpresas e emoções.

E para quem pensa que os nossos desbravadores sírios e libaneses só se preocupavam em trabalhar, amealhar dinheiro e enriquecerem, estão enganados. Aqui eles estabeleceram um modo de vida típico brasileiro, sem esquecer a cultura de origem, seus costumes, sua rica culinária, com pratos deliciosos e receitas disponíveis neste livro.

E Wilson Midlej não deixou por menos e usou toda sua verve de exímio contador de histórias, a exemplo de livros anteriores: Crônicas da Bahia Sob o Sol de Jequié (2014), Gatilhos de Lembranças: a Eternidade do Tempo (2015), e Anésia Cauaçu – Lendas e Histórias do Sertão de Jequié (2017).


*Radialista, jornalista e advogado

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Causo: Negociação à moda antiga

 Causo: Negociação à moda antiga


Bento era um homem de posses. Fazendeiro rico e empresário de sucesso, se a cidade em que morava fosse populosa nem saberiam como a conta bancária era recheada. Os trajes nada mudaram desde os tempos em que ele contava as moedinhas. Para ele, bom mesmo continuava a ser comer uma galinha caipira gorda, pescar, visitar Aparecida do Norte uma vez por ano. Terno e gravata só nas festas de formatura e casamentos dos filhos.

Bem, até o dia que ele teve que ir até Belo Horizonte negociar um carro para a filha caçula e algumas máquinas para a fazenda. Aquela era a quinta viagem se bobeasse à Capital Mineira. Pedro, braço direito nos negócios, insistiu que caprichasse mais na beca para mostrar firmeza na negociação. A contra gosto ele trocou a botina pelo sapato social e deixou o chapéu de palha em casa, colocou uma camisa social.

Chegaram ao primeiro local. Bento escolheu as máquinas que precisava e negociou as condições de pagamento. Conseguiu um bom desconto, fácil, fácil. A primeira empreitada o enganou. Quando foi negociar o carro, as habilidades pareciam poucas. O vendedor se recusava a baixar o valor. Mas Bento falou tanto na cabeça dele que o convenceu depois de falar que se o valor fosse melhor pagava com um cheque para 3 dias.

– Negócio fechado. Assina aí o cheque. Tem fundo, né?

– Claro que tem!

– Mas não custa confirmar, né? – alertou Pedro.

O braço direito de Bento fez uma conferência rápida e falou.

– Oh, baixa mais um pouco aí porque só mais um pouquinho e dá pra pagar à vista em três dias, senão só daqui a uma semana ou vamos ter que dividir – falou Pedro.

– Com uma semana tem jeito não, e se for dividir voltamos a negociar, com juros – disse o vendedor.

– Nada de juros, uma semana ou dividir com juros. Abaixa um tiquinho, não chega a R$ 100, compenso com umas galinhas – sugeriu Bento.

– O quê? – bradou o vendedor.

– O valor do carro, o quanto acho que vale, mais três galinhas, um super negócio.

– Galinha não é dinheiro! Nunca negociei com bicho!

– Dinheiro né não, mas é bão demais, caipira então, mió que tem. Eu sempre negociei colocando bicho na jogada, todo mundo ficou satisfeito.

– Bora então, cheque para três dias mais a galinhada domingo.

Apertaram as mãos. Bento assinou o cheque. O vendedor apareceu lá na fazenda domingo e comer até lamber os beiços. Disse que realmente era bom demais. Criado na capital nem lembrava o gosto de galinha caipira.

– Num falei com cê que né dinheiro, mas é bão demais? Aposto que tá mais satisfeito do que se tivêssemos fechado com o valor inicial.

– Menos, bem menos.

Na verdade, o vendedor estava satisfeito demais mesmo, mas não podia dar o braço a torcer. Depois daquele dia, ano após ano ele ligava para Bento para oferecer carros mais modernos, renovar a frota. Quando Bento queria, na negociação sempre entrava uma galinhada de lamber os beiços, os dois ficavam satisfeitos. O vendedor voltava cheio de causo pra cidade.

Escritor por Talita Camargos - Veja todos os textos deste autor

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

sábado, 27 de setembro de 2025

Como era de fato os neandertais

Como era de fato os neandertais

 

Esqueça a visão clássica dos neandertais isolados em cavernas frias, caçando mamutes em terras áridas e desoladas. Uma pesquisa recente, divulgada na revista Scientific Reports, indica que, cerca de 80 mil anos atrás, nossos parentes extintos desfrutavam do sol e do mar ao longo da costa portuguesa, revelando um estilo de vida muito mais diversificado e astuto do que se imaginava. Essas descobertas, baseadas nas primeiras pegadas de neandertais identificadas no país, oferecem uma perspectiva inovadora e detalhada sobre o dia a dia desses hominídeos, destacando sua adaptação inteligente a ambientes variados. Os achados pintam um quadro vivo de grupos familiares explorando dunas, caçando presas e coletando recursos marinhos, o que desafia estereótipos antigos e enriquece nossa compreensão da evolução humana. 🌊🦶

O estudo descreve essas pegadas como uma autêntica janela para o cotidiano pré-histórico, capturando instantes precisos da vida antiga. "As marcas registram um episódio específico, quase em tempo real, permitindo reconstruir ações como uma caminhada coletiva, uma perseguição intensa, uma fuga rápida ou simplesmente a presença em um local particular", explicam os geólogos Carlos Neto de Carvalho, da Universidade de Lisboa, e Fernando Muñiz, da Universidade de Sevilha. Diferente de ossos ou artefatos, que podem ser deslocados ou abandonados aleatoriamente, essas pegadas indicam exatamente onde os neandertais pisaram e como se locomoviam, adicionando camadas de detalhes sobre suas rotinas sociais e estratégias de sobrevivência em um ecossistema dinâmico e cheio de oportunidades. No Monte Clérigo, por exemplo, foram catalogadas 26 pegadas pertencentes a pelo menos três indivíduos de faixas etárias distintas: um adulto robusto, uma criança em fase de crescimento e um bebê com menos de 2 anos, sugerindo laços familiares fortes e atividades compartilhadas. As trilhas revelam que eles subiam e desciam dunas inclinadas, movendo-se devagar nas subidas para poupar energia e acelerando nas descidas para ganhar velocidade. A proximidade das marcas infantis aponta para a existência de um acampamento próximo, enquanto a sobreposição com pegadas de cervos indica táticas de caça sofisticadas, como armadilhas ou emboscadas planejadas, demonstrando um nível de inteligência coletiva e adaptação ao terreno que vai além do que se esperava. 🏞️🦌

Já na Praia do Telheiro, uma pegada isolada, provavelmente de uma adolescente ou mulher adulta, foi encontrada ao lado de marcas de aves litorâneas, reforçando que a existência neandertal não se restringia ao interior continental, mas incluía uma exploração ativa e estratégica das zonas costeiras, onde o mar oferecia recursos abundantes e variados. Essa conexão com o litoral sugere que eles integravam o ambiente marinho em sua rotina, possivelmente passando temporadas nessas áreas para maximizar a coleta de alimentos e minimizar riscos. A dieta desses hominídeos impressiona pela versatilidade: priorizavam veados, cavalos e lebres como presas terrestres principais, mas complementavam com itens costeiros, como moluscos frescos, caranguejos suculentos e até focas, mostrando uma capacidade notável de adaptação flexível ao que o ecossistema local proporcionava. Essa mistura de caça terrestre e coleta marinha ilustra uma abordagem equilibrada e sustentável, adaptada às estações e à disponibilidade de recursos, o que os tornava sobreviventes eficientes em um mundo em constante mudança. 🍲🐚

Para Carlos Neto de Carvalho, esses vestígios comprovam que os neandertais eram bem mais versáteis e perspicazes do que as narrativas tradicionais sugerem, com habilidades sociais e ambientais avançadas. “As pegadas abrem uma visão única e dinâmica para o comportamento rotineiro: um retrato instantâneo de dezenas de milhares de anos no passado”, ressalta o pesquisador, enfatizando como esses achados humanizam esses ancestrais, revelando famílias unidas, estratégias de caça colaborativas e uma harmonia com a natureza que ecoa até os dias atuais. Essa redescoberta não só reescreve partes da história evolutiva, mas também inspira reflexões sobre nossa própria conexão com o planeta e o legado deixado por esses primos distantes. Fonte: Trajetoriatop #Neandertais #VidaCosteira #PegadasAntigas #DescobertaPortugal #HistoriaEvolutiva #trajetoriatop

 

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A Cronica de Walmir Rosário - Direto de Canavieiras

 

AMIGO DE VERDADE NÃO SE COMPRA

Na Confraria d'O Berimbau Tyrone Perrucho observava 
a satisfação de todos e me abastecia de cerveja na cozinha

Por Walmir Rosário*

De há muito tempo a palavra amigo vem sendo descaracterizada e usada para nomear pessoas que nos batemos no dia a dia, embora não possuímos qualquer requisito de simpatia, confiança, ou quem sequer conhecemos. Às vezes nos referimos a alguém como amigo apenas para fazer uma pergunta e queremos mostrar educação ou alguma intimidade.

Na Canção da América, composta por Fernando Brant e Milton Nascimento, a coisa é mais séria e solenemente expõe: “Amigo é coisa pra se guardar/Debaixo de sete chaves/Dentro do coração...”. No Brasil o vocábulo amigo tem o mesmo poder de um canivete suíço nas mãos de quem se encontra no meio do mato sem cachorro e a usa como em mil e uma utilidades, como se fosse Bombril.

Em nenhum outro país deste mundão de Deus a palavra “amigo” é tão mal utilizada quanto no Brasil, quem sabe para mostrar aos cinco continentes que somos o povo mais bonachão na face da terra. Fora daqui, o brasileiro quebra a cara ao tentar dar um abraço em quem acabou de conhecer e apenas pediu uma simples informação.

Pelos manuais de convivência dos gringos deve ser observado um espaço regulamentar entre as pessoas desconhecidas, embora eu não possa precisar em centímetros. Em Amigo, Alexandre O'Neill destaca: “Mal nos conhecemos/ Inauguramos a palavra amigo!/ Amigo é um sorriso/De boca em boca,/Um olhar bem limpo”.

Existem os que afirmam que alguns amigos são mais que irmãos, pois não nasceram e nem conviveram no mesmo lar, filhos dos mesmos pais, mas que devem não apenas sorrir com a boca quando nos veem, e sim demonstrar com os olhos, quem sabe abrir os braços. Para um conhecido meu, a responsabilidade é tanta, que o amigo tem a mesma obrigação de um padrinho com o afilhado.

Outros, nos quais me incluo, são de opinião que amigos de verdade podem ser adquiridos num bar, desde que tenha a mesma qualidade de sua segunda casa, ou melhor, segundo lar. Os mais exaltados chegam a afirmar, categoricamente, que não se fazem amigos bebendo leite, líquido que não possui nenhuma substância capaz de atrair dois viventes entre a troca de palavras enquanto degustam uma cerveja.

No livro Crônicas de Boteco – um guia sem ordem, de nossa humilde autoria está estampado: “Um bom botequim tem que possuir requisitos essenciais para a volta do boêmio, seja no dia seguinte, no próximo fim de semana, ou quem sabe, muito em breve”.

Como diz a canção de Adelino Moreira tão bem interpretada por Nélson Gonçalves: “Boemia, aqui me tens de regresso/ e suplicando lhe peço a minha nova inscrição/ Voltei, pra rever os amigos que um dia/ Deixei a chorar de alegria/ Me acompanha o meu violão”.

E para reforçar, na mesma canção, até mesmo a mulher amada dispensa com o coração transbordando de amor as aventuras de encontrar os velhos amigos: “Acontece que a mulher que floriu meu caminho/ De ternura, meiguice e carinho/ Sendo a vida do meu coração/ Compreendeu e abraçou-me dizendo a sorrir/ Meu amor você pode partir/ Não esqueça do teu violão/ Vá rever os teus rios, teus montes, cascatas/ Vá cantar em novas serenatas/ E abraçar teus amigos leais”.

Como na música, mesmo sabendo que o boêmio andou distante, os colegas de botequim o acolhem com todo o carinho para matar a saudade do tempo de sumiço. Nada de gente falante a ironizar o afastamento, pois o que interessa mesmo é o retorno do companheiro de mesa, de pé de balcão, para, juntos, beberem novas e infinitas saideiras. Amigos de verdade, amigos do peito, como cantava a Turma do Balão Mágico.

Os amigos não esquecem um do outro. Mesmo que distantes não sossegam enquanto não se encontram. Não falo aqui do amigo de grupos de whatsapp, de conversa decorada, curta. Mas daqueles que Paulo Leminski cita no seu poema Amizade: “Meus amigos/ quando me dão a mão/ sempre deixam/ outra coisa/ presença/ olhar/ lembrança, calor/ meus amigos/ quando me dão deixam/ na minha/ a sua mão”.

De antemão aviso que olhares, sorrisos e gestos são os bens mais preciosos do que presentes materiais, estes esquecidos facilmente. Construí, mantive e mantenho um monte amigos de verdade, por todo o tempo. Alguns somem no caminho, por falta de alguma liga que cimentaria a verdadeira amizade. Coisa do passado. Mas não esqueçam que amigo é um bem muito caro.

Não poderia encerrar sem os gestos simples, consolidadores da amizade e que muitos nem chegam a notar. Um deles, que nos deixou com antecedência, Tyrone Perrucho, chegava ao extremo de observar as feições de todos os amigos da Confraria d’O Berimbau, para, com um simples olhar, descobrir quem por ventura não se sentia bem, satisfeito no momento.

E disso sou testemunha de quando me encontrava na prática do fogão ou churrasqueira, o amigo Tyrone Perrucho chegava sorrateiramente com um copo cheio de cerveja bem gelada e recomendava:

– Aproveite e beba, pois você está se prejudicado, sem beber nesse calorão. Aproveite a farra, pois Deus deixou as boas coisas para todos seus filhos –.

Gesto igual só partindo de um verdadeiro amigo!


Radialista, jornalista e advogado.