quinta-feira, 22 de maio de 2025

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015 CANAVIEIRAS DESBANCA SÃO PAULO E PROVA QUE O RODÍZIO COMEÇOU AQUI Por Walmir Rosário Parece que os historiadores têm memória curta! Impossível não se lembrarem de que rodízio de serviços prestados pelo governo e suas concessionários são coisa deste mundo moderno. Aí que vocês se enganam. Basta botar a mão na cabeça e puxar pela memória que vão se dar conta que não é São Paulo a pioneira no sistema de rodízio, nem mesmo a circulação de veículos, inaugurado anos atrás, nem o de água, cantado e reclamado em verso e prosa até os dias de hoje. Já deveria estar inscrita no Guines Book, o livro de recordes, caso algum canavieirense de memoria e boa vontade assim quisesse. Bastaria um simples telefonema, um simplório e-mail para os gringos conferirem o feito e desbancar São Paulo. Pois fiquem sabendo quem interessar possa que esse feito ainda vai ser motivo de orgulho, com livros de teses escritos para comprovar essa orgulhosa marca. Para que se restabeleça a verdade, São Paulo pode, no máximo, alcançar o segundo lugar. Esse motor ainda é pequeno em comparação ao Locomóvel E era a “Locomóvel”, nome de batismo popular dado à possante máquina que aportou por aqui à bordo de um vapor da Bahiana e transportada à rua Ruy Barbosa, local de sede da briosa “Luz e Força”, ou para os menos esclarecidos o motor de luz. Quem não lembra da festa iniciada com discursos e foguetórios para comemorar a chegada de um potente motor de luz! Era a glória, para os políticos de então, a começar pelo prefeito Edson Castro, autor do pedido. E chamava a atenção o tamanho da Locomóvel, que para os mais viajados parecia um motor de navio transatlântico, embora para outros se tratasse de uma cabeça de locomotiva vinda do exterior para gerar energia elétrica de qualidade em Canavieiras. Nem mesmo essa grandeza toda seria capaz de fornecer a potente iluminação – se comparada aos candeeiros, fifós, placas e aladins das residências – em toda a cidade. Como a potencia foi reconhecida insuficiente, um conhecido eletricista recomendou ao prefeito que não se avexasse com isso e estabelecesse um rodízio no fornecimento da moderna energia elétrica disponível das 18 às 23 horas. E a energia se despedia solenemente, com os devidos avisos de antecedência do desligamento, para dar tempo aos notívagos e os mais afoitos casais de namorados chegarem a casa ainda no claro. – Vai ser batata! – disse o eletricista ao prefeito, detalhando o projeto na ponta da língua: – Num dia, a gente liga as ruas Ruy Barbosa (onde ficava a Locomóvel), rua 13 (que ainda não era Octavio Mangabeira), General Pederneiras e dos Pescadores. No outro será a vez do complexo de praças da Bandeira, 15 de Novembro, São Boaventura e a avenida J. J. Seabra (hoje ACM). No terceiro dia seriam contempladas a, Benjamim Constant, Marechal Deodoro e Barão de Cotegipe –. E assim foi vivendo a sociedade canavieirense, que marcavam suas festas e demais eventos sociais para os dias de clarão em sua residência, gozando, portanto, das modernidades de então. Mas como a teoria de Murphy nos ensina que não existe nada ruim que não possa piorar, eis que a gloriosa Locomóvel bateu biela, quebrou pistom, queimou válvulas e chegou ao fim de linha. Eis que o que era ruim ficou pior. Eram os tempos do prefeito Osmário Batista, que prometeu substituir a Locomóvel por um gigantesco motor, equipamento vindo do exterior, não se sabe ao certo se Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Mas vinha com a missão de iluminar todo o território canavieirense, até a distante Potiraguá, ainda dentro dos seus domínios. Também não deu certo e o possante motor, logo apelidado de “elefante branco”, dada a sua pífia serventia. Foi o caos. Mas eis que as gestões políticas e uma comissão de alto nível liderada pelo prefeito Edmundo Lopes de Castro fez ver ao governador Lomanto Júnior que uma cidade do porte e da importância de Canavieiras não podia ficar às escuras, sob pena dos eleitores não acertarem nem mesmo depositar os votos nas urnas. Diante de tão qualificado e irrecusável apelo, eis que no dia 13 de dezembro de 1963 três conjuntos de moto geradores doados pelo governador Lomanto Júnior começam a funcionar, justamente no dia consagrado a Santa Luzia. Com isso, a Locomóvel foi aposentada e hoje, sequer, lembram dela, caiu no mais absoluto esquecimento. Entretanto, os três pequenos conjuntos de moto geradores não se encontravam à altura dos costumes de tradições de Canavieiras. É certo que deu sua contribuição, aumentando em uma hora o fornecimento de energia elétrica – das 18 às 24 horas – o era um considerável avanço, mas a vida noturna, a boemia, já não podia continuar às escuras, o cinema pretendia exibir uma segunda sessão, o clube social continuar as festas até o raiar do dia e sem energia nada disso seria possível. Foi então que no fatídico dia de 23 de agosto de 1973, sob as benções de Antônio Carlos Magalhães e do prefeito João Perelo, Canavieiras se integra ao seleto grupo de cidades interligadas ao sistema da Barragem do Funil e quiçá o moderno sistema de Paulo Afonso. Um dia como esse era especial e merecia uma comemoração à altura do benefício. Imediatamente, um grupo de rapazes alegres e chegados a um dia de folguedos sugerem – ou melhor, já levaram pronto – o ato oficial para decretar feriado em todo o Município, inclusive no Banco do Brasil. E assim foi feito: O prefeito João Perelo assinou o decreto e a cachaçada “comeu no centro” até altas horas do dia seguinte. Festejou-se muito, para nada! É que o governador Antônio Carlos Magalhães, o “Toinho Ternura” – que tinha fiat lux –, não estava presente às comemorações da nova iluminação e marcou uma nova data, 23 de outubro de 1973, esta oficial, com direito a aplauso de toda a sociedade. E para isso, um novo feriado foi decretado – também com a ajuda do grupo Tolé, Tedesco e cia.. – com o competente fechamento dos banco. Mais uma homérica cachaçada, em que até um professor e ex-pastor – um homem de Deus, portanto – se juntou à gandaia. Uma festa de arromba, digna do esquecimento da Locomóvel, máquina usada e abusada para não deixar a cidade às escuras, mas agora aposentada e enterrada num ferro-velho qualquer desse Brasil afora. Tolé até hoje ainda se lembra da maldade que fez com “velho professor” e da homérica ressaca sofrida. Mas, o que fazer, se até o Dr. Boinha Portela tinha colocado toda as mercadorias de O Berimbau à disposição dos amigos, com a recomendação expressa dada a Neném de Argemiro de não cobrar nada de ninguém, pois a farra seria bancado do seu próprio bolso. Realmente, foi por uma causa justa, justíssima!

 

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CANAVIEIRAS DESBANCA SÃO PAULO E PROVA QUE O RODÍZIO COMEÇOU AQUI

Por Walmir Rosário
Parece que os historiadores têm memória curta! Impossível não se lembrarem de que rodízio de serviços prestados pelo governo e suas concessionários são coisa deste mundo moderno. Aí que vocês se enganam. Basta botar a mão na cabeça e puxar pela memória que vão se dar conta que não é São Paulo a pioneira no sistema de rodízio, nem mesmo a circulação de veículos, inaugurado anos atrás, nem o de água, cantado e reclamado em verso e prosa até os dias de hoje.
Já deveria estar inscrita no Guines Book, o livro de recordes, caso algum canavieirense de memoria e boa vontade assim quisesse. Bastaria um simples telefonema, um simplório e-mail para os gringos conferirem o feito e desbancar São Paulo. Pois fiquem sabendo quem interessar possa que esse feito ainda vai ser motivo de orgulho, com livros de teses escritos para comprovar essa orgulhosa marca. Para que se restabeleça a verdade, São Paulo pode, no máximo, alcançar o segundo lugar.
Esse motor ainda é pequeno em comparação ao Locomóvel
E era a “Locomóvel”, nome de batismo popular dado à possante máquina que aportou por aqui à bordo de um vapor da Bahiana e transportada à rua Ruy Barbosa, local de sede da briosa “Luz e Força”, ou para os menos esclarecidos o motor de luz. Quem não lembra da festa iniciada com discursos e foguetórios para comemorar a chegada de um potente motor de luz! Era a glória, para os políticos de então, a começar pelo prefeito Edson Castro, autor do pedido.
E chamava a atenção o tamanho da Locomóvel, que para os mais viajados parecia um motor de navio transatlântico, embora para outros se tratasse de uma cabeça de locomotiva vinda do exterior para gerar energia elétrica de qualidade em Canavieiras. Nem mesmo essa grandeza toda seria capaz de fornecer a potente iluminação – se comparada aos candeeiros, fifós, placas e aladins das residências – em toda a cidade.
Como a potencia foi reconhecida insuficiente, um conhecido eletricista recomendou ao prefeito que não se avexasse com isso e estabelecesse um rodízio no fornecimento da moderna energia elétrica disponível das 18 às 23 horas. E a energia se despedia solenemente, com os devidos avisos de antecedência do desligamento, para dar tempo aos notívagos e os mais afoitos casais de namorados chegarem a casa ainda no claro.
– Vai ser batata! – disse o eletricista ao prefeito, detalhando o projeto na ponta da língua:
– Num dia, a gente liga as ruas Ruy Barbosa (onde ficava a Locomóvel), rua 13 (que ainda não era Octavio Mangabeira), General Pederneiras e dos Pescadores. No outro será a vez do complexo de praças da Bandeira, 15 de Novembro, São Boaventura e a avenida J. J. Seabra (hoje ACM). No terceiro dia seriam contempladas a, Benjamim Constant, Marechal Deodoro e Barão de Cotegipe –.
E assim foi vivendo a sociedade canavieirense, que marcavam suas festas e demais eventos sociais para os dias de clarão em sua residência, gozando, portanto, das modernidades de então. Mas como a teoria de Murphy nos ensina que não existe nada ruim que não possa piorar, eis que a gloriosa Locomóvel bateu biela, quebrou pistom, queimou válvulas e chegou ao fim de linha. Eis que o que era ruim ficou pior.
Eram os tempos do prefeito Osmário Batista, que prometeu substituir a Locomóvel por um gigantesco motor, equipamento vindo do exterior, não se sabe ao certo se Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Mas vinha com a missão de iluminar todo o território canavieirense, até a distante Potiraguá, ainda dentro dos seus domínios. Também não deu certo e o possante motor, logo apelidado de “elefante branco”, dada a sua pífia serventia.
Foi o caos. Mas eis que as gestões políticas e uma comissão de alto nível liderada pelo prefeito Edmundo Lopes de Castro fez ver ao governador Lomanto Júnior que uma cidade do porte e da importância de Canavieiras não podia ficar às escuras, sob pena dos eleitores não acertarem nem mesmo depositar os votos nas urnas.
Diante de tão qualificado e irrecusável apelo, eis que no dia 13 de dezembro de 1963 três conjuntos de moto geradores doados pelo governador Lomanto Júnior começam a funcionar, justamente no dia consagrado a Santa Luzia. Com isso, a Locomóvel foi aposentada e hoje, sequer, lembram dela, caiu no mais absoluto esquecimento.
Entretanto, os três pequenos conjuntos de moto geradores não se encontravam à altura dos costumes de tradições de Canavieiras. É certo que deu sua contribuição, aumentando em uma hora o fornecimento de energia elétrica – das 18 às 24 horas – o era um considerável avanço, mas a vida noturna, a boemia, já não podia continuar às escuras, o cinema pretendia exibir uma segunda sessão, o clube social continuar as festas até o raiar do dia e sem energia nada disso seria possível.
Foi então que no fatídico dia de 23 de agosto de 1973, sob as benções de Antônio Carlos Magalhães e do prefeito João Perelo, Canavieiras se integra ao seleto grupo de cidades interligadas ao sistema da Barragem do Funil e quiçá o moderno sistema de Paulo Afonso. Um dia como esse era especial e merecia uma comemoração à altura do benefício.
Imediatamente, um grupo de rapazes alegres e chegados a um dia de folguedos sugerem – ou melhor, já levaram pronto – o ato oficial para decretar feriado em todo o Município, inclusive no Banco do Brasil. E assim foi feito: O prefeito João Perelo assinou o decreto e a cachaçada “comeu no centro” até altas horas do dia seguinte.
Festejou-se muito, para nada! É que o governador Antônio Carlos Magalhães, o “Toinho Ternura” – que tinha fiat lux –, não estava presente às comemorações da nova iluminação e marcou uma nova data, 23 de outubro de 1973, esta oficial, com direito a aplauso de toda a sociedade. E para isso, um novo feriado foi decretado – também com a ajuda do grupo Tolé, Tedesco e cia.. – com o competente fechamento dos banco.
Mais uma homérica cachaçada, em que até um professor e ex-pastor – um homem de Deus, portanto – se juntou à gandaia. Uma festa de arromba, digna do esquecimento da Locomóvel, máquina usada e abusada para não deixar a cidade às escuras, mas agora aposentada e enterrada num ferro-velho qualquer desse Brasil afora.
Tolé até hoje ainda se lembra da maldade que fez com “velho professor” e da homérica ressaca sofrida. Mas, o que fazer, se até o Dr. Boinha Portela tinha colocado toda as mercadorias de O Berimbau à disposição dos amigos, com a recomendação expressa dada a Neném de Argemiro de não cobrar nada de ninguém, pois a farra seria bancado do seu próprio bolso.

Realmente, foi por uma causa justa, justíssima!

sexta-feira, 16 de maio de 2025

DESFRUTANDO OS BENEFÍCIOS DA APOSENTADORIA - Por Walmir Rosário

 

DESFRUTANDO OS BENEFÍCIOS DA APOSENTADORIA

O agrônomo José Alberto de Lima

Por Walmir Rosário*

A vida do ser humano não se resume numa série de planos. Desde cedo os amigos e parentes começam a perguntar o que você quer ser quando chegar à fase adulta. Questionamentos fáceis, respostas difíceis, embora na maioria das vezes os pimpolhos respondam sem pestanejar: aviador, médico, motorista, engenheiro e, pasmem, até políticos.

Ainda nesta fase, não há qualquer planejamento, no sentido científico, quem sabe muitos sonhos – pensamentos – que passam pela cabeça da criança ou adolescente, geralmente o que busca se espelhar em parentes ou quaisquer outras pessoas com as quais se identifique. Quem sabe lá na frente mude de ideia ou abrace outras oportunidades. O que é natural.

Há quem defina como uma pessoa vocacionada, determinada pelos sonhos de criança a que abraçou a carreira com afinco. Tenho um amigo que é tal e qual o pensamento que ora descrevo. Estudou, se diplomou em engenharia agronômica em 1980 pela UFBa, trabalhou por longos 45 anos e sequer pensou em algum momento encerrar a carreira.

Alberto com a equipe de extensão de Ibicuí

Mas chega o momento em que chega a hora de desfrutar de mais descanso no seio da família, com fazem muitas dessas pessoas. Aqui cito um caso particular do meu amigo e ex-colega de trabalho, José Alberto de Lima, também conhecido como Alberto da Ceplac, jequieense que dedicou dois terços de sua vida à agronomia e ao Ministério da Agricultura.

E o exemplo da dedicada vida profissional transferiu para a família, da qual sempre se orgulhou, enaltecendo o convívio com a esposa, seus quatro filhos, todos bem-criados e que lhe deram sete netos. Sim, no alto dos seus 73 anos era chegada a hora de dar um tempo nas constantes viagens a trabalho, e privilegiar a família e os amigos mais chegados,

E Alberto colecionava amigos aos montes por onde passou. Assim que ingressou na Ceplac, lá pelos anos 1980, foi designado extensionista em Itapetinga, transferido dois anos depois para a cidade de Ibicuí, onde permaneceu por 14 anos. Em 1966, assume uma nova missão, desta vez como Auditor Fiscal do Ministério da Agricultura, em Salvador, até 1997.

Em 1998 foi Alberto é transferido para Itabuna, embora prestasse seus serviços por várias cidades, a exemplo de Juazeiro e Petrolina, principalmente na inspeção de frutas para a exportação. E nesses 45 anos soube colecionar os amigos por onde passou, desde os colegas de trabalho, clientes do Mapa e os muitos vizinhos das cidades que residiu.

Allberto e colegas auditores fiscais do Mapa

Sempre foi a alegria em pessoa, distinto no trato dos colegas e desconhecidos, pronto a servir a quem dele precisasse, desde a uma simples orientação ou outro préstimo qualquer. A índole de Alberto combinava perfeitamente com a do extensionista, disposto a solucionar desafios junto aos agricultores, expondo os problemas e orientando resolvê-los.

Assim que Alberto chegava ao Clube Seac (Sociedade dos Engenheiros Agrônomos do Cacau), em Itabuna, ao refeitório da Ceplac, ou qualquer bar era rodeado de colegas e amigos para um alegre bate-papo. E Alberto era – e é – sinônimo de bom humor, apropriado para contar uma boa história, levantar o astral de um amigo, as vitórias no dia a dia do seu trabalho.

Não posso deixar de citar aqui uma pequena indiscrição (no bom sentido). Sempre que convidado a participar de um encontro ou às comemorações de seu aniversário, eu observava atentamente. O anfitrião se preocupava com os mínimos detalhes sobre as preferências de cada um dos convidados, inclusive se preocupando em oferecer os comes e bebes de acordo com gostos e paladares.

Finalmente, a partir desse maio em curso, José Alberto (Alberto da Ceplac) entra em gozo definitivo dos benefícios de sua aposentadoria funcional, aos 73 anos bem vividos. Entretanto, ele continua em plena atividade no convívio da família, dos amigos, e torcendo pelo Bahia e Botafogo, times pelos quais divide sua paixão no futebol. Vida longa a Alberto!

*Radialista, jornalista e advogado.


terça-feira, 13 de maio de 2025

DENTRO E FORA - Hermann Hesse

 

DENTRO E FORA - Hermann Hesse



Era uma vez um homem chamado Friedrich, devotado às coisas do espírito e de
vastos conhecimentos. Gostava, porém, de concentrar todo o seu saber num
modo particular de pensar e menosprezava todos os demais. Tinha na mais alta
estima a Lógica, essa tão magnífica disciplina, e os conheci­mentos a que
dava o nome geral de Ciência.

"Duas vezes dois são quatro" - costumava ele dizer. -"nisso que eu acredito
e é partindo dessa verdade que um homem deve usar o raciocínio".

Não ignorava, é claro, que existiam muitas outras maneiras de pensar e
interpretar as coisas, mas não as considerava "ciên­cia" e, portanto, não
lhes dava importância. Conquanto fosse um livre-pensador, não era
intolerante no que dizia respeito á religião. Nisso comportava-se de acordo
com a atitude de tácita anuência dos cientistas. Há muitos séculos a Ciência
ocupava-se de tudo o que existia no mundo, e estimulava o desejo de
investigar e saber, com exceção de um único objeto: a alma humana. Deixava-a
a cargo da religião e não tomava a sério as especulações que ela fazia sobre
a alma mas, enfim, tolerava-as porque, com o decorrer dos séculos, tinham-se
con­vertido num hábito. Assim, no tocante à religião, Friedrich mantinha uma
atitude tolerante mas o que profundamente lhe repugnava e enfurecia era tudo
o que envolvesse e fosse reco­nhecido como superstição.  Somente admitia o
pensamento místico e as explicações mágicas entre povos ignorantes e
atra­sados quer de uma antigüidade remota; quer da atualidade pri­mitiva e
inculta de certas regiões exóticas. Desde que existia uma Lógica e uma
Ciência, deixara de fazer sentido recorrer a esses recursos obsoletos e
duvidosos.

Assim pensava e assim argumentava Friedrich. Quando ao seu redor se
manifestavam indícios de superstição, irritava-se e era como se tivesse sido
tocado por algo hostil e pernicioso.

O que mais o aborrecia era encontrar tais indícios entre seus iguais, homens
cultos que estavam tão familiarizados quanto ele com os princípios do
raciocínio científico. E nada lhe era mais doloroso e insuportável do que
ouvir certas idéias blasfemas como a que escutara, recentemente, de um homem
de elevada cultura, que afirmara esta coisa absurda: - o racio­cínio
científico não é, provavelmente, a mais elevada, rigorosa e intemporal forma
de pensamento mas, pelo contrário, a mais transitória, vulnerável e
perecível entre todas as formas de pensar! - Essa irreverente e perniciosa
opinião tinha seus adeptos, isso não podia Friedrich negar, mas era um
reflexo da miséria gerada pelas guerras, pela subversão e pela fome que
assolavam o mundo, e surgira como uma advertência, uma desculpa e um aviso
fantasmagórico escrito sobre a parede branca.

Quanto mais Friedrich sofria com a existência dessa nefasta idéia, mais
veementemente hostilizava os que a propagavam ou aqueles que supunha
esposarem-na secretamente. Na verdade, só alguns raros homens de erudição
tinham franca e abertamente confessado sua concordância com a nova corrente
de pensamento que, se lograsse expandir-se e triunfar, destruiria
provavelmente os alicerces da cultura e provocaria o caos no mundo.

Ora, até esse momento, ainda não se chegara a tal ponto e os cientistas que
tinham defendido abertamente a nova idéia eram tão poucos que podiam
perfeitamente passar por indi­víduos excêntricos ou fanáticos. Porém, uma
pequena gota do veneno, uma tênue irradiação desse pensamento, já era
per­ceptível aqui e ali. Nas camadas do povo e entre as pessoas semicultas
já se notava o florescimento de uma série de seitas, de escolas, de
correntes com seus mestres e discípulos, pre­gando ensinamentos em que a
Lógica e a Ciência não tinham vez. O mundo começava de novo se enchendo de
superstições, artes ocultas, magia negra, misticismo, necromância e outras
manifestações que o racionalismo quase extinguira e que era urgente combater
de novo. Mas a Ciência, talvez em virtude de um sentimento de íntima
fraqueza e de mal compreendida tolerância, silenciava.

Um dia, Friedrich foi visitar um de seus amigos, com quem já realizara
diversos estudos. Há muito tempo que não se viam e, enquanto subia as
escadas, procurou lembrar-se de quando estivera pela última vez na casa
desse amigo. Embora pudesse gabar-se, habitualmente, de uma excelente
memória, desta vez não conseguia recordar esse pormenor. Insensivelmente,
dei­xou-se possuir de uma certa irritação e desapontamento, ao bater à
porta.

Quando saudou o amigo Erwin, Friedrich notou logo na fisionomia jovial que
lhe retribuía o cumprimento um certo sorriso de afabilidade comedida que não
lhe parecia ter visto nunca nos tempos de quase diária convivência mútua.
Frie­drich pressentiu imediatamente que, por detrás desse sorriso, havia
algo de irônico ou hostil e, no mesmo instante, lembrou-se daquilo que ainda
há pouco estivera inutilmente vasculhando na memória: o seu último encontro
com Erwin. Sim, lembrava­-se muito bem que, embora não tivessem discutido,
separara-se dele com surda irritação, porquanto lhe parecia que Erwin não o
apoiava como devia, nessa época, nos ataques que vinha desencadeando contra
o pensamento místico e supersticioso. E também já se lembrava por que motivo
não voltara a pro­curar Erwin durante largo tempo. Era estranho como poderia
ter esquecido tudo isso! Na verdade, evitara o convívio do amigo unicamente
por causa dessa divergência, fato que ele sabia o tempo todo, muito embora
arranjasse sempre outros motivos para protelar uma nova visita a Erwin.

Eis que estavam agora frente a frente e parecia a Friedrich que a pequena
brecha de outrora se ampliara de um modo assustador. Em seu íntimo, sentia
que entre ele e Erwin faltava agora algo que sempre existira, aquela
atmosfera de sólida cooperação, de imediata compreensão e, até, de mútua
simpatia resultante de inclinações e propósitos comuns. Em vez disso,
Friedrich encontrou na sua frente uma expressão de estranheza, como se
através do próprio sorriso de Erwin pudesse espreitar para o vazio que havia
lá dentro. Cumpri­mentaram-se, falaram do tempo, que era feito de fulano e
cicrano, como iam de saúde... e Deus sabe como, a cada palavra proferida,
Friedrich via aumentar a sensação angus­tiante de incompreensão recíproca,
de estarem falando como dois desconhecidos perfeitamente alheados aos
problemas um do outro e não encontrarem um motivo que os conduzisse a uma
boa e agradável conversa. Erwin continuava com seu comedido sorriso afável,
que Friedrich já começava a odiar.

Numa pausa do penoso diálogo que se arrastava havia alguns minutos,
Friedrich viu na parede do tão conhecido gabinete de estudo de Erwin, uma
folhinha de papel presa por um alfinete. Essa imagem tocou-o fortemente,
despertando velhas lembranças: recordou que, durante os anos de estudante,
Erwin tinha o costume de conservar assim, diante dos olhos, uma sentença de
algum pensador ou os versos de algum poeta. Levantou-se e foi ler a folhinha
na parede.

Nela estava escrito, com a disciplinada caligrafia do co­lega, a seguinte
frase: "Nada está fora, nada está dentro. Pois o que está fora, está
dentro".

Friedrich empalideceu e manteve-se imóvel por instantes. Aí estava! Aí
estava o que ele tanto temia! Em outra época, talvez tolerasse aquilo,
talvez encarasse aquela frase com indul­gência, como uma inofensiva e, em
última análise, compreen­sível manifestação de sentimentalismo, digna de ser
estudada. Mas agora era diferente. Tinha a certeza de que aquelas pa­lavras
não tinham sido anotadas por causa de uma fugaz dis­posição poética nem por
um capricho que fizera Erwin retomar, após tantos anos, um hábito da
juventude. O que ali estava escrito, naquela parede, era uma confissão do
que ocupava atualmente o espírito do amigo: era uma prova de misticismo.
Erwin era mais um renegado.

A passos lentos, dirigiu-se ao amigo, cujo sorriso resplan­decia de novo.

- Explica-me aquilo - intimou Friedrich.

- Não conhecias essa sentença?   indagou Erwin, ama­velmente, erguendo a
cabeça.

- Sim, claro que conheço! ~ uma sentença mística, puro gnosticismo! Talvez
tenha alguma poesia, não discuto. Mas o que eu desejo que me expliques é por
que a tens pendurada na parede.

- Com todo o prazer - replicou Erwin. - Essa sentença é uma espécie de
introdução à nova epistemologia, a cujo estudo me dedico atualmente e à qual
devo algumas felizes realizações.

Friedrich mal podia esconder seu desgosto.

- Dizes que é então uma nova ciência do conhecimento? E acaso isso existe?
Que nome tem?

- Oh, na verdade, só é nova para mim. De um ponto de vista histórico, é uma
ciência bem antiga e respeitável, em­bora a conhecessem sob outro nome:
Magia.

A negregada palavra! Eis que ela fora pronunciada! Friedrich, profundamente
surpreendido, quase assustado, diante de uma confissão tão clara, via-se
frente a frente com seu inimigo supremo, na pessoa do amigo. Sentiu arrepios
e permaneceu calado. Não sabia se estava mais próximo da cólera ou se da
compaixão e das lágrimas. De qualquer modo, foi assaltado por uma terrível
sensação de perda irremediável. A amargura não o deixava encontrar palavras.
Depois, com uma ironia for­çada na voz, indagou:

- Abandonaste, então, a carreira de cientista para te tor­nares um... um
feiticeiro, é isso?

- Exatamente - retorquiu Erwin sem hesitai..

- Aprendiz de feiticeiro, eh?

- Correto.

Friedrich calou-se de novo, literalmente perplexo. Ouvia-se o tique-taque de
um relógio no quarto vizinho, tal o silêncio que reinava no gabinete.

- Sabes que, com isso, deixaste de ter qualquer coisa em comum com a
Ciência, que essa tua epistemologia não tem nenhuma relação com a verdadeira
teoria do conhecimento, enfim, que nenhuma seriedade pode haver num estudo
que se baseia em falsas premissas? E também deves saber, sem dúvida, que não
pode haver qualquer relação entre nós dois?

- Eu esperava que sim - respondeu Erwin. - Mas se co­locas as coisas nesse
plano... que posso eu fazer?

- O que podes fazer? - interrompeu Friedrich, quase gri­tando. - Não sabes o
que podes fazer? Acabar com essa brincadeira de mau gosto, com essa triste
crença em artes sobrenaturais, indigna de um homem de saber! Romper
com­pletamente e para sempre com tudo isso! É tudo o que te resta a fazer,
se acaso queres conservar a minha amizade e o meu respeito.

Erwin sorria, embora já não parecesse tão jovial quanto antes.

- Falas assim - disse ele em tom baixo, de maneira que a voz irritada de
Friedrich ainda parecia ressoar no gabinete - falas assim como se tudo
dependesse da minha vontade, como se estivesse em meu arbítrio escolher um
ou outro rumo, Friedrich. Mas não e assim. Não me compete optar. Não fui eu
que escolhi a magia. Foi ela que me escolheu. Friedrich soltou um profundo
suspiro.

- Então passa bem. - E levantou-se, sem estender a mão ao amigo.

- Assim não! - exclamou Erwin, agora mais agitado. - Não, assim não quero
que me deixes. Imagina que um de nós estivesse moribundo. Seria assim...
seria desta maneira que nos despediríamos?

- Qual de nós, Erwin, é o moribundo?

- Creio ser eu, Friedrich. Quem quer renascer deve estar disposto a morrer
primeiro.

Friedrich acercou-se novamente da folhinha na parede e releu a sentença
sobre o que está dentro e fora.

- Bom - disse ele, por fim. - Tens razão, nada adianta separarmo-nos
zangados. Seja como tu dizes e vamos supor que um de nós está moribundo. Eu
também poderia ser o moribundo. Porém, antes de partir, quero fazer-te um
pedido.

- Isso me agrada ouvir - disse Erwin. - Que poderei fazer por ti, como
despedida?

- Vou repetir a minha pergunta inicial, que foi ao mesmo tempo uma
intimação: explica-me essa sentença e trata de fazê­-lo o melhor que
possas - disse Friedrich, apontando para a folhinha.

Erwin refletiu por momentos e disse:

- Nada está fora, nada está dentro. O significado teoló­gico tu o conheces
tão bem quanto eu. Deus está em toda a parte. Ele está nos espíritos e na
natureza. Tudo é divino porque Deus está em tudo e para Ele não existe fora
nem dentro. Está identificado com todas as coisas. A isso chama­vam outrora
Panteísmo. Vamos agora ao conceito filosófico: a separação de dentro e fora
é um hábito mental mas não é forçosamente necessária. Existe para o nosso
espírito a possi­bilidade de transcender as fronteiras que lhe foram
traçadas e atingir o Além. E é para além dos limites do nosso mundo e da sua
estrutura de pares opostos e antagônicos, como o Bem e o Mal, o Belo e o
Feio e tantos outros, que se abrem novos e diversos conhecimentos. Ah, meu
caro amigo, devo te confessar: desde que se operou essa mudança em meu
pen­samento, nunca mais houve para mim palavras e frases, enun­ciados e
sentenças de um só sentido, senão que cada palavra, cada frase, passou a
revestir-se de dezenas, centenas de signi­ficados. E é nesse ponto que
começa aquilo que tu mais temes e detestas: a Magia.

Friedrich franziu o cenho e quis interrompê-lo mas Erwin olhou-o,
tranquilizador, e prosseguiu:

- Permiti-me que te dê um exemplo. Leva daqui uma coisa que me pertence,
algum objeto e, de vez em quando, observa-o. Verificarás que, ao
contemplá-lo, o objeto em si, com suas características próprias e limitadas,
suscitará no teu Intimo muitos outros significados, por exemplo, a nossa
antiga amizade, este encontro e uma infinidade de outros pensamentos que
nada têm a ver com esse insignificante objeto.

Erwin olhou ao seu redor, levantou-se e retirou de uma prateleira uma
estatueta de porcelana vidrada, entregando-a a Friedrich. E então disse:

- Aceita isto como presente de despedida. Quando este objeto, que ora
entrego em tuas mãos, estiver dentro e fora de ti, volta a visitar-me.
Porém, se continuar sempre fora de ti, como está agora, isso significará que
a nossa despedida de hoje foi para sempre!

Friedrich ainda tentou dizer alguma coisa mas Erwin já lhe estendia a mão,
apertando-a e dizendo "adeus" com uma expressão que não dava lugar a mais
palavras.

Friedrich desceu a escada (há quanto tempo subira ele aquela escada?),
caminhou vagarosamente rumo a casa, a pe­quena estatueta apertada na mão,
perplexo e, muito no seu íntimo, desolado. Parou diante da porta, sacudiu
por instantes o punho onde se encontrava a estatueta e, irritado, sentiu
von­tade de espatifar no chão aquela coisa ridícula. Não o fez e, mordendo
os lábios, entrou em casa. Nunca se sentira tão con­turbado, tão atormentado
por sentimentos contraditórios.

Procurou um lugar onde pôr a estatueta do amigo e co­locou-a na última
prateleira de uma estante de livros. Ali ficaria por enquanto.

Durante o dia, Friedrich olhava uma vez ou outra para a estatueta, meditando
sobre sua procedência e sobre o signifi­cado que tão inofensivo objeto
poderia ter em sua vida. Era uma pequena imagem humana, de um deus ou ídolo
antigo, não muito humana, de fato, pois tinha dois rostos, como o deus
romano Janus, Era de porcelana grosseira e muito mal-acabada. O seu vidrado
tinha rachado, talvez por excesso de calor. Certamente não era um trabalho
saído das mãos dos artífices gregos ou romanos. Mais parecia ter sido
moldada por algum povo primitivo da África ou das ilhas do Pacífico. Sobre
as duas faces, que eram réplica uma da outra, esboçava-se um sorriso
apático, inerte e descorado: era até chocante como o pequeno duende podia
desperdiçar seu tempo com um sorriso tão tolo.

Friedrich não conseguia habituar-se àquela imagem. Era-lhe inteiramente
repugnante, desagradável, embaraçava-o, in­comodava-o. Tirou-a da estante e
colocou-a sobre a estufa. Dias depois, retirou-a da estufa e levou-a para o
armário. Mas a estatueta de duas caras constantemente lhe surgia diante dos
olhos, sorrindo-lhe fria e estupidamente, impunha-se-lhe à vista, exigia
atenção. Duas ou três semanas depois, Friedrich retirou-a de seu gabinete e
colocou-a na ante-sala, entre algumas fotos da Itália e diversas recordações
que de lá trouxera, mas tão insignificantes que ninguém olhava para elas.
Agora, pelo menos, Friedrich só veria o ídolo primitivo nos momentos em que
saía ou entrava em casa, passando rapidamente por ele e sem sequer o olhar
de perto. Mas a verdade é que, mesmo sem querer admiti-lo, a estatueta
também ali o incomodava.

Como esse mostrengo de duas caras, esse pedaço de barro mal-acabado, tinha
penetrado em sua vida e o atormentava!

Meses depois, Friedrich regressou de uma curta viagem - de vez em quando,
empreendia essas excursões como se algo o impelisse a fazê-lo, movido por
uma súbita intranqüilidade   entrou em casa, passou pela ante-sala, foi
saudado pela sua governanta e leu a correspondência que o aguardava. Estava,
porém, inquieto e distraído, como se tivesse esquecido algo importante;
nenhum livro lhe apetecia ler, em nenhuma cadeira se sentia confortável.
Decidiu examinar seus próprios sentimentos: o que lhe estava acontecendo, de
repente? Teria esquecido alguma coisa importante? Sofrera algum
contra­tempo? Comera algo prejudicial? Tentava lembrar-se. Refle­tia e
procurava concluir se essa incômoda sensação o acometera antes de entrar em
casa, ou depois, na ante-sala, ou... Teve um brusco sobressalto e correu
para a ante-sala, procurando instintivamente com o olhar a estatueta de
porcelana.

Uma estranha sensação lhe percorreu o corpo quando não viu em seu lugar o
ídolo de duas caras. Como poderia ter desaparecido? Teria fugido em suas
pequenas pernas de barro? Voado? Algum estranho feitiço o chamara para as
longínquas paragens donde viera?

Friedrich reagiu, sacudindo a cabeça e repreendendo-se, sorridente, pelo
despropósito de sua angústia. Deveria, em pri­meiro lugar, descobrir a
estatueta em algum outro ponto, pro­curando-a calmamente na casa. Talvez,
distraído, a tivesse mudado de lugar. Depois, não a encontrando, chamou a
gover­nanta. Embaraçada, confessou que aquela estatueta lhe escor­regara das
mãos, quando arrumava a ante-sala.

- E onde está?

- Não existe mais. Tive-a várias vezes na mão, parecia-me uma coisa tão
forte e resistente. Mas ao cair desfez-se em mil pedaços. Ficou
irrecuperável, doutor. Joguei-a no lixo.

Friedrich mandou a governanta retirar-se. Sorriu. Não ficara contrariado.
Por Deus, que não sentia pena alguma pela perda do feio manipanso. Estava
livre dele. Agora teria sos­sego. Era o que deveria ter feito logo no
primeiro dia: espa­tifado aquela coisa em mil pedaços! Agora se apercebia do
que sofrera todo esse tempo! Como o ídolo lhe sorria com sua dupla cara
indolente, maliciosa, velhaca, diabólica! Já que a estatueta não mais
existia, podia confessar: sim, ele temia, sinceramente temia aquele pedaço
de barro cozido. Não era, afinal, um símbolo de tudo o que para Friedrich
era hostil e insuportável, tudo o que ele tinha na conta de pernicioso,
degradante e a ser implacavelmente combatido superstição, obscurantismo,
forças inimigas da clareza de consciência e de espírito? Não representava
aquela brutal força telúrica, aquele distante terremoto que ameaçava, por
vezes, destruir a verda­deira cultura sob um caos de trevas? Aquela mísera
imagem não lhe roubara o seu melhor amigo - não só o roubara como o
convertera em adversário? Bom, a coisa tinha desaparecido. Quebrada. Morta.
Era bom assim, muito melhor do que se ele próprio a tivesse quebrado.

Friedrich continuou dedicado a seus estudos e tarefas.

Mas parecia uma maldição. Agora, quando já se habituara mais ou menos à
presença da ridícula estatueta e a vê-la no seu lugar da ante-sala; quando,
com o decorrer do tempo, já se lhe tornara familiar e indiferente...
começava a sentir sua falta! Sim, sentia falta dela. Toda a vez que passava
pela ante-sala e via o lugar vazio que a estatueta costumava ocupar, uma
estranha angústia se apossava de Friedrich. O vazio ampliava-se em toda a
ante-sala, penetrava no seu gabinete de estudo, nos quartos, um vazio
estranho e cruel por toda a casa, como a súbita ausência fria de um parente
muito querido.

Dias horríveis e piores noites vieram torturar Friedrich. A falta do ídolo
de duas caras obcecava-o e dominava seus pen­samentos. Já não era apenas
quando passava pela ante-sala e via o lugar vazio, oh não, Fiedrich
sentia-se impelido a pensar nele a qualquer momento, desalojando de seu
espírito tudo o mais. Era como se a própria estatueta tivesse fisicamente se
instalado em sua mente e, de modo implacável, fosse roendo, devorando. tudo
o mais que lá dentro encontrara, gerando em seu íntimo um vazio semelhante
ao que criara no resto da casa.

Como se quisesse convencer-se do absurdo que era lamen­tar a perda do
insignificante objeto, recordava-o mentalmente em todos os seus pormenores.
Revia-o em toda sua tosca feal­dade, com seu sorriso velhaco e... sim,
chegava mesmo a tentar, com a boca torcida, imitar aquele sorriso!
Assediava-o a pergunta: as duas caras seriam realmente iguais? Uma delas,
talvez  a causa de uma pequena rachadura no vidrado, não teria uma expressão
ligeiramente diferente da outra? Uma expressão algo interrogativa? Como o
sorriso da Esfinge? Ah, e como era pavorosa a cor da pintura! Era verde...
não, tam­bém tinha azul. Ou era cinza? Tinha a certeza de que tam­bém havia
um pouco de vermelho. Era um vidrado que Frie­drich encontrava agora em
muitos outros objetos: via-o no faiscar de um raio de sol, batendo na
vidraça de uma janela, nos reflexos da chuva que batia nas pedras da
calçada...

Sobre o vidrado da estatueta também pensara muito du­rante a noite. Dava-se
conta de que "vidrado" era uma palavra esquisita, desagradável, falsa,
petulante. Analisava-a, decom­punha-a com raiva, soletrava-a furioso. Só o
diabo saberia dizer a que soava, de fato, essa palavra ruim, cheia de duplos
sentidos. Finalmente, lembrou-se de ter lido há muitos anos, durante uma
viagem, um livro que simultaneamente o espan­tara, torturara e, de modo
secreto o fascinara. Chamava-se A Princesa Vidrada. Era uma verdadeira
maldição! Tudo o que se relacionava com a estatueta - a cor, o vidrado, o
sor­riso - significava hostilidade, veneno, feitiço. A Princesa tam­bém fora
transformada por um inimigo que escondera sua maldade sob o artifício de um
sorriso. E recordou então o estranho sorriso do seu ex-amigo Erwin, quando
lhe entregou a estatueta! Tão estranho, tão veladamente hostil.

Friedrich lutava corajosa e virilmente contra essa obsessão que lhe
torturava o espírito e não se pode dizer que era mal sucedido em sua
batalha. Pressentia nitidamente o perigo e não queria enlouquecer. Preferia
mil vezes morrer. A luci­dez mental era imprescindível, a vida não. E
admitiu que talvez isso fosse o resultado de uma obra de magia, que Erwin,
com a ajuda dessa estatueta, o tivesse enfeitiçado de algum modo - fazendo
com que ele, o defensor implacável da inte­ligência esclarecida e da
ciência, caísse em poder dessas forças ocultas. Mas... se isso fosse
verdade, se ele era capaz de admitir essa possibilidade... então existia,
sim, então a magia era uma realidade! Não, era preferível morrer a admitir
seme­lhante coisa!

Um médico receitou-lhe passeios e abluções. À noite, procurou algumas vezes
distrair-se nas tavernas movimentadas. Mas pouco adiantava. Amaldiçoou Erwin
e amaldiçoou-se a si próprio.

Certa noite, estava ele deitado em sua cama e, como ocorria com freqüência
nessa época, desperto antes do tempo, sem conseguir conciliar de novo o
sono. Sentia-se indisposto e assustado. Perdera a antiga confiança nos
poderes absolutos de sua inteligência. Queria raciocinar, procurar conforto
em algu­mas frases lúcidas, tranqüilizantes, algo como "dois e dois são
quatro". Mas nada lhe acudia à mente, ficava balbuciando frases indistintas
e confusas, articulando palavras sem sentido exato. Por vezes, seus lábios
moviam-se instintivamente para proferir aquela frase que vira escrita
algures, que já tivera diante dos olhos, não sabia bem onde. E balbuciava-a
entre dentes, como se quisesse narcotizar-se, como se tentasse voltar do
caminho estreito à beira de um abismo insondável para as delícias do sono
perdido.

De súbito, ao falar mais alto, as palavras apenas balbu­ciadas penetraram,
de chofre, em seu consciente. Friedrich as conhecia agora. Ouvira-as
nitidamente. Sua própria voz cla­mava: "Sim, agora estás dentro de mim!"
Compreendeu ime­diatamente o que isso significava. Sabia que essas palavras
se referiam à estatueta de porcelana e que, nessa hora da noite, com um
rigor implacável, a profecia de Erwin estava se cum­prindo: aquela figura
grotesca que ele tivera em suas mãos e olhara com desprezo, já não estava
mais fora dele, estava den­tro! "Pois o que está fora, está dentro."

Levantou-se de um salto, como se gelo e fogo percorressem seu corpo a um só
tempo. O mundo girava vertiginosamente à sua volta. Friedrich vestiu-se às
pressas, saiu de casa e correu, envolto pela noite da cidade adormecida, à
casa de Erwin. Viu luz acesa no conhecido gabinete de estudos do velho
amigo. O portão estava aberto. Tudo parecia indicar que era esperado.
Trêmulo, empurrou a porta do gabinete de Erwin e apoiou-se, quase
desfalecido, na escrivaninha. Com o rosto iluminado pela suave luz do
abajur, Erwin sorria. Le­vantou-se de sua poltrona e, afavelmente, disse:

- Então vieste. Sim, foi bom que viesses.

- Tu... estavas à minha espera? - murmurou Friedrich.

- Espero-te, como sabes, desde o instante em que saíste de minha casa,
levando o meu pequeno presente. Aconteceu, por acaso, aquilo que te disse
aquela vez?

- Aconteceu - sussurrou Friedrich. - O teu ídolo está agora dentro de mim.
Não o suporto mais.

- Posso ajudar-te? - indagou Erwin.

- Não sei, não sei. Faz o que quiseres. Fala-me de tua ma­gia. Explica-me
como o ídolo poderá sair novamente de mim.

Erwin colocou a mão no ombro do amigo. Levou-o até uma poltrona e convidou-o
a sentar-se. Depois, dirigiu-se cari­nhosamente a Friedrich, num tom quase
paternal.

- O ídolo sairá novamente de ti. Confia em mim. Confia sobretudo em ti
mesmo. Com ele aprendeste a crer. Agora terás de aprender a amá-lo. Sim, ele
está dentro de ti mas já sabes que não morreu. Por enquanto, tampouco é algo
com vida. Circula em ti como um espectro, um fantasma sem vida própria.
Acorda-o, fala com ele, indaga-o, insufla-lhe vida. Friedrich, ele é tu
mesmo! Não o odeies, não o temas, não o tortures... como tens torturado
aquele pobre ídolo que és tu! Meu pobre amigo, como te amarguraste a ti
próprio!

- É esse o caminho da magia? - perguntou Friedrich, afundado na poltrona, a
expressão envelhecida. Sua voz era suave.

- Esse é o caminho - respondeu Erwin. - E o passo mais difícil já deste.
Poderás negar a tua própria experiência? Que o fora pode tornar-se dentro?
Tens vivido além das fron­teiras dos pares opostos. Pareceu-te um inferno?
Pois acredita, amigo, que é o céu. ~ o céu que te espera. E que nome se
poderá dar, se não o de magia, a algo que troca o fora por dentro, não por
coação, não com sofrimento, como até agora aconteceu contigo, mas
livremente, por uma imposição da nossa própria vontade? Assim poderás
invocar o teu passado e o teu futuro, pois ambos se encontram dentro de ti.
Até hoje, Friedrich, tens sido escravo do teu íntimo. Aprende a ser o seu
senhor. Isso é magia!

 "O Livro das Fábulas"  Hermann Hesse, Civilização Brasileira,  1977.

sábado, 10 de maio de 2025

MEU DESENCONTRO NO ENCONTRO COM OS CEPLAQUEANOS - Por Walmir Rosário

 

MEU DESENCONTRO NO ENCONTRO COM OS CEPLAQUEANOS

Os Ceplaqueanos compareceram em massa ao encontro

 Por Walmir Rosário*

Uma das frases mais em voga nos dias de hoje é “quando o cavalo passa selado você tem que montá-lo”, dando a entender que jamais o indivíduo terá uma nova oportunidade. E isso aconteceu comigo recentemente e me nego a aceitá-la como verdade absoluta, como se eu ou qualquer outro ser humano não tivéssemos obstinação, persistência.

E esses dias eu deixei passar o tal do cavalo selado sem que pudesse montá-lo. Garanto que não se tratou de uma simples falha, incompetência, mas por motivos superiores. Não aqueles dados como desculpas esfarrapadas para não comparecer a compromissos assumidos, mas por excesso de confiança na sumida temporária da malfadada labirintite.

Eu deveria me apresentar às 11 horas, no Codornas Restaurante, em Itabuna, para o I Encontro dos Ceplaqueanos da Divisão de Extensão de Itabuna, nesse colóquio inaugural. Dada a sua importância, todo o planejamento realizado, bastaria me deslocar de Canavieiras com duas horas e meia de antecedência e abraçar os velhos e queridos colegas.

José Mário sempre atento na organização do evento
Missão abortada, devidamente comunicada por whatsapp, com as devidas escusas e lamentar minha inusitada ausência, comportamento que não faz parte do meu dicionário. Mesmo impedido de estar no evento de corpo presente, mantive o compromisso moral de marcar presença mental, espiritual torcendo pelo sucesso do primeiro de uma série de eventos que prometem entrar em pauta.

Mas que os servidores da Ceplac discutiriam nesse encontro, se a instituição continua no leito de morte, sem direito a atendimento com vistas a recuperar seus áureos tempos? Tudo. O engenheiro agrônomo aposentado Luiz Ferreira da Silva anotou em seu livro “A fazenda Corumbá que virou Ciências 60 anos atrás” que a Ceplac era mais que uma empregadora, era uma religião.

Na mesma obra, Luiz Ferreira cita que seu colega e líder extensionista Ubaldino Machado movimentava sua turma por meio da palavra parceiro, em moda nos dias de hoje. Era esse o espírito de corpo implantado na instituição por Carlos Brandão e “Zé Haroldo”, incutindo em todos a chamada filosofia da solidariedade.

Do mais simples operário ao titulado cientista, a palavra colega era o tratamento adequado, pois todos deveriam agir com excelência na sua missão profissional conjunta. Do operário de campo, passando pelo motorista, escriturário, comunicador, técnico, aos profissionais mais graduados, tinham que ser os melhores. E a Ceplac disponibilizavam os meios para tal.

Cada um dos ceplaqueanos carregava consigo o dever de tornar a região cacaueira um modelo de desenvolvimento e até hoje se sentem orgulhosos com famosa sensação do dever cumprido. Ainda hoje perdura o reconhecimento regional sobre a excelente qualidade da formação e desempenho profissional dos ceplaqueanos, distinção que se estendeu por todas as regiões cacaueiras do Brasil.

Assim sendo, têm o que comemorar, comentar o dia a dia na instituição Ceplac, as lembranças das realizações, incluindo aí as dificuldades enfrentadas nas tarefas em locais inóspitos, as vitórias. A Ceplac não era uma simples empregadora, mas uma instituição reconhecida e respeitada pelos que fizeram acontecer na transformação das regiões cacaueiras da Bahia.

Para os mais novos que não puderam acompanhar a missão da Ceplac, vale lembrar que mantinha os departamentos de pesquisa, extensão, ensino técnico, e desenvolvimento atuando dentro e fora das porteiras das fazendas. Esse esforço de inovação tornou possível a implantação da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), ampliando a formação da inteligência regional.

Não fossem os programas da Ceplac, não teríamos o porto do Malhado, tal como é, os milhares de quilômetros de estradas vicinais, a maior rede de energia rural, a modernidade na telefonia, em todos os campos do conhecimento. Estrategicamente, beneficiou todos os municípios das regiões cacaueiras do Brasil, com escritórios, estações experimentais, todos tocados com o que tinha de mais inteligente e de alto poder aquisitivo no comércio.

Mas voltando ao encontro dos servidores da Divisão de Extensão de Itabuna, nada melhor que essa satisfação de bem estar pelo cumprimento das responsabilidades de antes e o reconhecimento de suas participações. Se por anos tiveram esse compromisso com a Ceplac, continuam, como sempre, com a sociedade onde vivem e são distinguidos.

E nada melhor do que viver com dignidade e alegria. No próximo estaremos juntos, parabenizando a eficiência da organização.


*Radialista, jornalista e advogado